sábado, 28 de abril de 2012

O sombra

Assumir a culpa publicamente é coisa difícil de se ver. Mas diria que tenho coragem de assumir, de dizer isso: na minha infância eu era o sombra de meu irmão mais velho, Ademir. Onde ele ia, lá estava eu... Mesmo contra a vontade dele. E isso ocorria na maioria das vezes... Não tinha outro jeito! Quando via Ademir se preparando para sair, sabia que vinha jogo ou alguma outra brincadeira pela frente. E lá ia eu: “posso ir com você?” Claro que Ademir já vinha com desculpas, que era jogo de gente grande, etc, etc, etc... Mas eu já emendava: “posso pedir pra mãe?” Ele abria um sorriso nos lábios para dizer simplesmente: “vamos embora!!!” Sorriso também brilhava no meu rosto pela vitória e lá ia eu, ou melhor, lá ia o sombra do Ademir. Futebol na rua era certeza de jogar na base do eu e o Ademir contra o resto. Claro que a frase era exatamente ao contrário, ou seja, dita por ele: “eu e meu irmão contra o resto”. Depois do jogo, depois da vitória, íamos para casa satisfeitos com o resultado. Bolinha de gude era outra brincadeira que me deixava feliz. Até porque, quando eu perdia, Ademir saía em minha defesa – e eu não perdia bolinha alguma! – ou muitas vezes vinha algo que eu detestava: todo mundo me chamando de “café com leite!” Nessa hora, confesso que preferia ter ficado em casa... O gostoso mesmo era jogar bola. Claro que nunca fui nenhum craque, mas gostava de ver o pessoal jogando, principalmente quando o jogo era na rua, no meio da rua, sem se preocupar com movimentos de carros. Tudo isso porque a avenida São Paulo, na vila Progresso, onde eu morava, era de terra. Calçada, um verdadeiro “barrancão” e muito mato: a gente aproveitava para brincar de pega-esconde. Mas o gostoso mesmo era acompanhar os passos do irmão mais velho. Como uma verdadeira sombra... Não conseguia entender porque meu irmão não queria que o acompanhasse nas brincadeiras. Queria mostrar a ele que os amigos dele também poderiam ser meus. “O pessoal é mais velho, você é ainda é criança”, dizia ele. E lá ia eu me lamentar com minha mãe. Mais tarde, alguns anos depois, é que entendi porque os irmãos mais velhos não gostam de levar os mais novos para brincar. Quando Ademir fez 14 anos e começou a trabalhar, eu chegava aos 9, tinha que levar Osmar, que tinha 6 para brincar com meus amigos. Imagino que Toninho tenha sido o sombra do Osmar e que o Bertinho tenha sido o sombra do Toninho. A grande preocupação do irmão mais velho é que o sombra funcione como uma espécie de dedo-duro. Medo era fazer alguma coisa errada, se envolver numa briga e o caso chegar aos ouvidos da mãe. Pronto! No dia seguinte não tinha brincadeira. Claro que haviam os “acordos”. O mais novo não contava nada das confusões em casa e podia acompanhar o mais velho no outro dia. Claro que acordo era muito mais vantajoso do que se transformar em dedo-duro. Mas criança não tem noção exata das coisas. Acha que coisa errada deve ser denunciada e acaba ficando irritado quando percebe que o castigo que um recebeu é repassado para o outro também. É lógico que minha mãe deixaria eu ir brincar sozinho na rua com os amigos do meu irmão. Até porque eu deixaria de ser sombra. E isso, que eu me lembre, só aconteceu muitos anos depois...

terça-feira, 24 de abril de 2012

Sorvete de coco queimado

Ainda bem que domingo sempre existiu. Principalmente nos tempos da Cruzada Eucarítica Infantil de Vila Arens, no final da década de 50 e início da de 60! E Cruzada significava: missa das crianças todo domingo, às 7h30, reunião de aprofundamento religioso até 9h30 e, depois, caminho de casa. E, se bom era existir o domingo, o dia se transformava em excelente no tempo de verão porque, no caminho de volta havia o Bar do Japonês, bem em frente à Sifco do Brasil, na avenida São Paulo. E Bar do Japonês tinha um significado especial: ali, nosso grupo de garotos e garotas era sempre vem vindo. Neste bar, às 9h30, durante o verão, era dia de esvaziar o balcão de sorvetes. Passávamos por ali em dez, doze pessoas. Durante o período da vida, eu, Ana Maria, João Zorzi, Oswaldo Soares, José Carlos Tresmondi, Aparecida Zorzi e, num outro período, eu, Ana Maria, Toninho, Laércio Toffolo, Eucidir Bernuci e outros jovens que minha memória me trai neste momento. Parávamos no Bar do Japonês e ele já sabia o sabor do sorvete preferido do grupo: coco queimado! A impressão que a gente tinha era que só ele sabia fazer este sorvete. O sabor, realmente, era de coco. E, melhor ainda, coco queimado... e sorvete de coco queimado tinha gosto de... coco queimado... Saboreávamos aquilo ali mesmo, dentro do bar. Conversando com o dono do bar e um ou outro freguês que estava por ali. Nenhum cliente tomando cerveja ou pinga naquela hora. Ainda! Depois de nos deliciarmos com o sorvete era hora de ir embora e... mais uma rodada de sorvete de coco queimado! Este, a gente saboreava a caminho de casa, porque a delícia do sabor tinha que durar mais tempo... E o dia se completava por volta das 16 horas. Neste horário terminava a matinê no Cine Vila Arens, que funcionava em frente ao Colégio Divino Salvador. E no caminho de volta, uma parada obrigatória: o Bar do Japonês. A pedida: sorvete de coco queimado! Na hora de ir embora, a despedida de sempre: “até domingo”. Era a certeza de mais sorvete de coco queimado!!! E era nestas conversas sobre sorvetes e sabores que nos lembrávamos de um tempo ainda mais distante de hoje: quando ainda nem escolas frequentávamos, mas que já sonhávamos com sorvetes. E tinha que ser sorvete de “copinho”, não de “palito”. Mas como nossas mães tinham aquela preocupação em não dos deixar tomar coisa gelada, para evitar possíveis resfriados, nosso sorvete de “copinho” tinha um sabor diferente: sorvete de doce de abóbora, que saboreávamos com o mesmo tipo de pazinha que outras crianças ou adolescentes, usavam para saborear os sorvetes de massa. É que nosso sorvete de doce de abóbora, colocado dentro do mesmo tipo de copinho dos sorvetes de massa, era conhecido pela gente como “sorvete quente”. E esse não fazia mal prá ninguém. E deixávamos o Bar do Japonês, relembrando histórias como essa, mas não deixando de elogiar o sorvete de coco queimado. E foram muitos e muitos domingos. Diria que infindáveis domingos com sabor de coco queimado. Mas como tudo que é bom, um dia acaba: o bar fechou as portas e o japonês não deixou a receita para ninguém e nunca mais saboreamos aquele sorvete que nossa infância perpetuou em nossa memória.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Vazio... até um dia!

Sabe aquelas pessoas que passam por nossa vida, por um período curto de tempo, mas que marcam para sempre? dona Benedita é um exemplo disso para mim. A conheci em 1958, exatamente no primeiro ano primário do Grupo Escolar Paulo Mendes Silva, onde iniciei meus estudos. Naquele tempo não havia Jardim, Pré-Primário ou qualquer coisa parecida: matriculados na escola, entrávamos no primeiro ano. E dona Benedita foi minha primeira professora. E tudo que é primeiro na nossa vida, a gente jamais esquece. Principalmente pessoas que nos mostram coisas boas, que nos trazem ensinamentos de qualquer ordem que seja. Sempre a vi com respeito e medo. Respeito por ser mais velha que eu e, acima de tudo, por me ensinar a ler e escrever. Medo porque sempre fui tímido e o contato com pessoas diferentes da minha família, me deixavam morrendo de medo. Cheguei a receber um elogio dela no primeiro ano, quando escreveu no meu caderno de caligrafia: “parabéns! Letra muito bonita”. Guardei isso para minha vida. Apesar de o caderno ter se desgastado com o tempo, confesso que vejo as letras desta mulher em minha memória até hoje. Mas a vida nos prepara peças que não imaginamos que vão acontecer. E meu contato com ela terminou no final daquele ano. Fui aprovado e virei aluno de dona Odete e dona Benedita desapareceu do quadro negro colocado na sala de aula onde eu estudava. Terminei o primário, fiz o ginásio, o colegial, me formei na faculdade, me casei, mudei para Campinas e Jundiaí desapareceu de minha vida por um bom tempo. Voltei a Jundiaí há pouco mais de dez anos e, um dia, no meu trabalho, alguém me interroga se fui aluno de dona Benedita. Quando afirmei que sim, sua filha, que me interrogava, me disse: “ela te viu na tevê ontem e, quando apareceu seu nome, me afirmou categoricamente; ‘este foi meu aluno’”. Penha riu e me disse que não acreditou muito no que ela dizia e, quando confirmei, a própria filha se assustou com a boa memória da mãe. Me encontrei com dona Benedita em 1998 quando lancei um livro no Museu e a convidei, simplesmente porque queria que ali estivesse a mulher que me ensinou a escrever... E ela me enumerou meia dúzia de alunos, que estudavam na mesma classe que eu. Me surpreendi pela memória extraordinária desta mulher, mas me lembrei de sua filha, que tivera a mesma reação que eu tempos atrás. No meu último aniversário, quando atendi uma ligação, uma voz me disse rapidamente: “parabéns, grande escritor”. Tive que perguntar: “quem é?” e, do outro lado, depois de um breve sorriso, ela respondeu: “sua primeira namorada, não lembra não?” Não tive dúvidas: “dona Benedita?”. Mais histórias dos tempos de escola, mas troca de elogios de um para com o outro e um até breve. Mas este breve não teve tempo de acontecer. Um dia, folheando o jornal, me surpreendi com um comunicado de missa de sétimo dia. Era dela! Ela tinha partido e nem me deixou recado. Senti os olhos marejarem, pois as letras do jornal se embaralharam, percebi duas lágrimas tentando fugir de meus olhos, mas eu tentando segurar. O jornal foi abandonado num canto da sala e saí pela rua em busca de não sei o que. Me perdi no tempo, no espaço, e percebi um vazio dentro de mim. Nós temos tão pouco tempo neste mundo e, na maioria das vezes, deixamos de lado pessoas que nos prezam tanto e só sentimos saudade quando elas se vão, como penas levadas pelo vento para um lugar onde não temos acesso, mas que, com certeza, chegaremos um dia. Mas não temos como suprir esta saudade, não temos como preencher este vazio que vai ficar para sempre em nós. (o texto está completando 7 anos. É o tempo que faz que ela partiu. No último dia 13 me encontrei com sua filha, a secretária de Cultura Penha Camunhas, que me informou que estava vindo da missa dos 7 anos de falecimento de sua mãe. Não tinha como não prestar esta homenagem agora)

sábado, 14 de abril de 2012

O coroinha do bispo

Quem entra na igreja de Vila Arens hoje não imagina que todos os altares ali existentes foram utilizados para celebrações de missa e, durante a semana, todas ao mesmo tempo. Me lembro que as intenções eram individuais, ou seja: cada missa deveria ser celebrada para um falecido e em altares diferentes. Na década de 1960, quando eu era coroinha, as missas ocorriam às 6h30 e 7 horas e três ou quatro ao mesmo tempo. Como as celebrações eram em latim, já que o Concílio Vaticano II que decidiu que os fiéis deveriam participar orando junto com o padre durante a missa só ocorreu anos mais tarde, as orações eram em voz baixa, acompanhada apenas pelo coroinha que, com uma folha impressa em latim, respondia de acordo com as palavras do padre. Padre Alberto celebrava no altar principal, padre Hugo, às vezes na capela do Santíssimo, tinha ainda padres Dionísio e Gabriel ou até mesmo Gervásio ou Ditmar, que faziam as celebrações nos altares do Sagrado Coração de Jesus – em frente à sacristia – e Nossa Senhora de Fátima – em frente à capela do Santíssimo. No altar principal ou altar mór, havia sempre a celebração de sétimo dia. Um pano preto com uma cruz desejada, aberto no chão, mostrava que ali a missa era de falecido recente. Ao final da celebração, os participantes apanhavam água benta e benziam o pano aberto. Fazia-se fila para isso. O padre celebrante abria a benção, seguido pelos parentes e amigos do falecido. Distribuia-se, então, santinhos com a foto do falecido e, na maioria das vezes, com a oração de São Francisco. Achava interessante ver tantas missas celebradas ao mesmo tempo. Nas primeiras sextas-feiras, as missas ocorriam nos altares laterais, já que no principal, a cada dez minutos, o padre vinha distribuir comunhão. As pessoas comungavam e voltavam para o banco para acompanhar o restante da missa que participava. Primeira sexta-feira era sinônimo de igreja cheia. Sempre! Muita gente que não podia participar, por causa do trabalho, comungava e depois ia embora. E foi num dia desses que chegou um bispo para celebrar. Sabia que era um bispo, pois usava um solidéu – um pequeno barrete usado na cabeça, parecido com uma boina. O sacristão me olhou e fez sinal para ser o coroinha desta missa. Vesti a túnica preta – para celebrações para falecidos – uma veste branca por cima e acompanhei o bispo. Nunca tinha visto um na minha vida assim... tão de perto. Isto porque Jundiaí não era diocese e fui crismado com dois anos, pois dependia da vinda do bispo para este sacramento. Terminada a celebração, o bispo passou a mão na minha cabeça, “obrigado menino” disse ele e foi embora. Fiquei olhando ele se afastar da igreja, quando o sacristão me abordou, perguntando se sabia quem ele era. Fiz que sim com a cabeça, mas disse que não sabia o nome. Foi então que conheci Dom Agnelo Rossi, filho do velho foieiro, que era bispo de Campinas, passando dias na casa do pai e do irmão que moravam na rua Moreira César, ali perto da Igreja. Só em casa, ao comentar com minha mãe o que acontecera que senti o coração bater mais forte, pois percebi que ela se emocionara com meu feito. Claro que nunca mais cruzei com ele na sacristia da igreja de Vila Arens nem no dia a dia da vida. Afinal, ele passou muitos anos trabalhando em Roma. Me lembrei deste fato no dia 21 de maio de 1995 quando a rádio informou de seu falecimento. E, confesso, a emoção voltou a tomar conta de mim. Sorri ao lembrar de sua mão passeando por minha cabeça e das únicas palavras que me disse em português, já que a missa toda fora em latim. E de novo me lembrei da batina esvoaçante que balançava com a suavidade do vento e com o andar tranquilo de seus passos. E é aí que a gente percebe que a vida escorrega pelos dedos, nos escapa das mãos e nos provoca vazios que, mesmo sem a convivência, nos proporciona um momento de orgulho de um fato que não volta mais... E o “obrigado menino” ainda ecoa nos meus ouvidos, mesmo meio século depois...

terça-feira, 10 de abril de 2012

Jogo de botão

Jogo de botão em casa parecia dia de festa. E isso acontecia todo dia, toda hora. Quando não vinham amigos do Ademir, a competição era em família. O “campo” era sobre a mesa de jantar. Como a família era grande – seu Alcindo, dona Angelina e meia dúzia de filhos – a mesa tinha mais de dois metros de comprimento e foi sobre ela que Ademir, com réguas, esquadros e uma faca, literalmente riscou o campo. Convencer seu Alcindo de que aquela era a diversão do momento foi difícil, mas dona Angelina salvou a situação, alegando que era melhor ver os filhos brincando em casa do que na rua, sem saber com quem. Foi o suficiente para o “campo” ser desenhado onde Ademir imaginara. Mas os detalhes seguintes é que nem seu Alcindo nem dona Angelina imaginavam que fossem acontecer. Os botões eram vendidos em qualquer papelaria, com distintivo e tudo, todos da mesma cor, mas a gente gostava de inovar e ignorar esta parte. Tínhamos os nossos próprios botões, nossos próprios “craques”. A lojinha da dona Ludovica era visitada por nós para escolhermos botões de calças ou paletós que eram grandes para melhor jogar. De posse dos botões, precisávamos lixar a parte debaixo dos mesmos, para que não pulassem no campo, toda vez que a batedeira os empurrasse em direção à bolinha. E é aqui que entra a surpresa que a gente preparava para nossos pais. Era comum visualizarmos, numa calça ou num paletó, um botão especial. Aquele que considerávamos que poderia ser o craque do jogo. Pronto! Com a tesoura na mão, lá ia um de nós cortar as linhas que prendiam o botão à roupa. Uma lixadinha na parede, para o botão não pular e lá entrava ele em campo para participar do jogo. Muitas vezes usávamos o botão e Ana Maria – a única filha mulher de seu Alcindo e dona Angelina – o recolocava na roupa. Mas outras vezes recebíamos a grande bronca na hora de alguém vestir determinada roupa e a mesma estivesse sem um botão. Nenhum de nós assumia a responsabilidade pelo “desaparecimento” do craque... Mas muitas vezes ríamos ao ver um botão recolocado na roupa e com o verde da parede onde foi lixado aparecendo. Mas se dona Angelina percebesse isso era um “Deus nos acuda” para tirar o botão da roupa, lavar e recolocar. Os jogos eram sérios, tempo cronometrado, juiz para controlar a “violência” dos botões e a partida terminava, sempre com muita animação por parte do vencedor e frustração do perdedor. O tempo do jogo seguia “quase” a mesma linha de uma partida oficial. Eram quatro minutos e meio por quatro minutos e meio, como se fosse 45 minutosX45 minutos. Tudo dentro das mesmas regras. Havia impedimento, faltas e até disputa em pênalti se houvesse necessidade. Era comum, também, os “negócios” envolvendo os botões. Os melhores eram trocados por três ou quatro do interessado, outros não tinham preço no “mercado” e o “dono do time” não vendia. E depois dos jogos, os comentários eram sempre de um lance melhor trabalhado, de a bola entrando no ângulo do gol inimigo, de um gol perdido infantilmente... Enfim, eram vibrações de uma grande partida de futebol. Mesmo que fosse de botão. Mesmo que fosse uma brincadeira. Mesmo que fosse um sonho de um dia, alguém da família, se tornar jogador de futebol. Claro que isso nunca aconteceu. Ninguém virou craque. A mesa onde foi “construído” o campo, hoje não existe mais, mas o que existe são fotografias de lances gravadas em nossas memórias. Um tempo que permanece inesquecível em cada um de nós. Um tempo que o tempo não consegue apagar...

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Procissão e missa de Páscoa

Domingo de Páscoa era assim: acordar uma hora mais cedo que os outros domingos para participar da celebração da Páscoa da Ressurreição. Se normalmente acordávamos às seis e meia para missa das Crianças uma hora depois, no domingo de Páscoa, cinco e meia era o horário de levantarmos, colocar o uniforme da Cruzada Eucarística Infantil, apanhar a caixa de papelão com a surpresa para a cerimônia e caminhar um quilômetro de casa até a igreja para a festividade, todos felizes com a celebração. A primeira vez que levamos as caixas surpresa foi em 1961. Padre Hugo, durante a reunião geral, disse que queria algo diferente na celebração da Páscoa que ganhava, a partir daquele ano, uma “roupagem diferente”. É que padre Alberto,o vigário, decidiu fazer a procissão do Cristo Ressuscitado às seis e meia e terminar com a missa na Praça ao lado da Dubar, no alto do bairro. Mas teria, neste ano, a procissão do encontro: depois da missa das seis e meia, na Igreja, as senhoras do Apostolado da Oração levariam o andor de Nossa Senhora das Graças e, na praça, haveria o encontro das duas procissões e imagens. “Seria de arrepiar”, dizia ele. E começamos a preparar o “arrepio”: a ideia era levar, numa caixa de papelão, pombas que seriam soltas quando Padre Alberto gritasse “Viva Jesus Ressuscitado!”. Como ele sabia que era difícil cada uma das 50 crianças da Cruzada conseguir pombas, quem não a tivesse que levasse pétalas de rosas nas caixas para serem jogadas nos andores das imagens, justamente no mesmo instante em que as pombas levantassem vôo. As crianças já ficaram arrepiadas quando o padre divulgou a estratégia da ação. Mas deveria ser surpresa: se alguém perguntasse o que havia nas caixas, a resposta de todos deveria ser “pétalas de rosa”, mas só poderiam ser abertas para mostrar aos curiosos, caixas com as mesmas. E saiu a procissão! O velho foieiro, senhor Vicente Rossi, pai do futuro cardeal Agnelo Rossi ia à frente dos integrantes da Irmandade do Santíssimo segurando a cruz. Ao seu lado, duas velas acesas, com o dia começando a clarear. Os demais integrantes da Irmandade carregavam o andor nos ombros. Descemos até a rua Barão do Rio Branco, pegamos a Cavalcanti, viramos na José do Patrocínio, em seguida, a Vigário/Olavo Guimarães e subimos a Emile Pilon. Nesta rua, tentávamos evitar o cântico para não atrapalhar a missa, mas prestávamos atenção para saber em que parte estava. Depois pegávamos a Fernando Arens e subíamos a Tibiriçá, cansados de tanto caminhar. Quando chegamos à Praça, percebemos, subindo a rua Francisco Telles, a procissão de Nossa Senhora da Graças. Orientados por padre Alberto, as imagens se aproximaram e ficaram uma ao lado da outra e começou a missa. Nenhum de nós prestava atenção nela, apenas nas caixas. Curiosos queriam saber o que havia ali, as pombas colaboravam, com um silêncio imenso. Buracos estratégicos nas caixas permitiam que elas pudessem respirar e pronto! Padre Hugo aproximou-se de Padre Alberto após a comunhão e, juntos, gritaram “Viva Jesus Ressuscitado!” as caixas se abriram, pétalas voaram sobre os andores e as pombas se espalharam pelo céu. Um “óóóóóóó” de emoção tomou conta de todos. Uma das pombas voou em direção ao andor do ressuscitado e sentou-se no ombro do Cristo. Um outro suspiro tomou conta de todos. A pomba branca não conseguia voar. “É o Espírito Santo” disse alguém. Minha preocupação era saber onde estava a pomba que soltei e se tinha voltado para a casa do Zé Mota, meu vizinho. Terminada a festividade, volta para casa foi cheia de comentários sobre o ocorrido, falando sobre o “arrepio” provocado. Até lágrimas vimos rolar, principalmente das senhoras do Apostolado. Já em casa, vi a pomba no telhado da casa de Zé Mota. Prova que ela encontrara o caminho de casa.