quarta-feira, 30 de maio de 2012

Moacyr, Arquimedes e Orlando

Infância e farmácia podem ter finais de palavras parecidos, mas significam rejeição, medo, injeção, dor, choro. Mas as farmácias dos anos 50 tinham uma curiosidade especial: os farmacêuticos eram como se fossem médicos da família, que faziam visitas em casa, aplicavam injeções e conquistavam os pacientes, principalmente se fossem crianças, por conta do medo e adultos, por conta da confiança nos mesmos. Na minha infância, me lembro de dois médicos: dr. Fredini e Toledo. Depois deles, só seu Moacyr e seu Arquimedes, farmacêuticos próximos à minha casa. Não sei porque, mas os farmacêuticos me inspiravam maior confiança, talvez por brincarem mais, por rirem com a gente, ao contrário da seriedade dos médicos. E não foi só uma vez que vi seu Moacyr na minha casa, ou examinando um ou aplicando injeção em outro. E tanto este como seu Arquimedes, que na verdade se chamava Lázaro de Almeida e que foi um dos mais populares vereadores de Jundiaí, tiveram ações fundamentais em minha vida: Moacyr cuidou de um ferimento em minha cabeça, quando, nos meus 8 anos de idade, joguei um bambu na goiabeira para colher a fruta mais linda que tinha no pé e este caiu na minha cabeça, provocando sangue, desespero e lágrimas. A outra, também regada a sangue e lágrimas, ocorreu com meu irmão Ademir, que rasgou o braço num arame farpado e acabou levando um ponto no lugar ferido, ponto este, de responsabilidade de seu Arquimedes. Talvez estas ações tenham provocado em mim um interesse pela área, tanto que meu primeiro emprego foi atrás de um balcão de farmácia, vendendo remédios, tentando ler receitas, sem conseguir, mas traduzidas por seu Moacyr, atento em me explicar para que determinado remédio era bom. E foi neste trabalho que percebi a agitação destes farmacêuticos, mas a calma com o paciente, ouvindo histórias, fazendo perguntas, medindo pressão e temperatura, mas o que me assustava era a hora em que ele pegava o palito de madeira para examinar a garganta. Só de sentir o palito tocando minha língua, já sentia ânsia. E foi esta calma e paciência que me permiti aprender a aplicar injeções e acabei arrumando alguns pacientes. E foi também, nesta função, que conheci seu Orlando, dono da droga Orlando, que ficava no centro da cidade. Era ali que eu ia praticamente todos os dias, comprar os remédios que faltavam nas prateleiras da farmácia de seu Moacyr. E o comum nos três era a agitação e a paciência. Pelo menos era isso que sentia. Quantas vezes via seu Moacyr correndo atrás do balcão em busca de um remédio, mas a calma seguinte, em explicar o que significava aquele produto, a orientação para se tomar e o sorriso de confiança recebido do paciente. Seu Arquimedes era igual: o atendimento às crianças sempre terminava com um passar de mão pela cabeça, desajeitando os poucos cabelos ou o apertar da bochecha, desde que o paciente fosse uma menina. E nos meus 14 anos de idade, com meu primeiro emprego, via seu Orlando atravessando a farmácia em busca de um remédio, subindo a escada para pegar o produto láááááááá em cima... e o descer pacientemente para orientar o freguês. Foram três pessoas que marcaram minha vida, exatamente por este estilo de agir. Seu Arquimedes dedicou sempre parte de seu tempo à política, seu Orlando vendeu sua farmácia a uma família de chineses e me chamou para ajudar a contar os produtos das prateleiras, para avaliar o estoque existente e seu Moacyr cansou do balcão, fechou as portas, vendeu o prédio e viu o mundo seguir seu rumo. Deixei de lado a difícil arte de cuidar dos doentes e me transferi para o campo das letras, seguro de que não colocaria em risco a vida das pessoas... até porque não tinha a paciência destes anjos de carne que Deus colocou no mundo!

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Tio João

À primeira vista, pode parecer propaganda de arroz, mas não é. Na verdade, é isso mesmo: meu tio João! E outra verdade é que tive dois tios com este nome e os dois foram meus padrinhos: um de batismo e outro de crisma. O de batismo era o mais velho e a madrinha era sua esposa, minha tia Maria. Uma verdadeira história infantil, olhando por este lado: João e Maria. Para identificar os dois, eu dizia tio João, o novo, ou tio João, o velho. Ou ainda, o de batismo ou o de crisma. João, o velho, era casado com a irmã de meu pai e João, o novo, era irmão de minha mãe. Convivi pouco com o mais velho, até porque morava mai s longe e, como condução era difícil, a gente só se via no final de ano, perto do Natal. Mas por estar sempre adoentado, era minha tia Maria que me visitava e trazia um presente. Como eu morava na Vila Progresso e ele no Anhangabaú, achava que era rico, principalmente por causa do bairro, não me incomodando com a casa velha, precisando de reforma. Quando ele morreu, eu cursava o primeiro ano primário e me lembro que, depois do enterro, voltamos para casa de ônibus. Me lembro de minha tia chorando, do velório em casa e, pouco antes do enterro, as pessoas rezando pela alma de meu tio João. Me lembro de seus poucos cabelos, sorriso constante nos lábios e um olhar triste, motivado, imaginava eu, por sua doença. Por não haver velório na cidade, os corpos eram velados nas casas e, após o sepultamento, durante três noites seguidas, rezava-se o terço na mesma casa, pela alma do falecido e todos participavam da missa de sétimo dia e recebiam uma lembrança com foto e datas de nascimento e morte da pessoa. Fui o primeiro de meus irmãos a perder um padrinho, mas sabia que me restava a madrinha Maria e ainda meu outro tio João, este mais novo e que morava mais perto, visitando a gente mais vezes com sua bicicleta, com um banquinho adaptado na frente, onde levava o filho Celso para passear e eu, como afilhado, aproveitava a situação e quase sempre ganhava carona. O tio João, mais novo, trabalhava num armazém, na Vila Arens, bem em frente à igreja e era lá que minha mãe fazia a despesa mensal e era lá que eu ganhava balas e doces, mas era em sua casa que terminávamos a tarde de domingo, já que morava perto de meu avô José. Meu avô morava no jardim Bonfiglioli, na rua Marrocos e meu tio quase sempre estava por lá.. Mas quando não estava, a gente passava em sua casa, na rua Pitangueiras, que deu lugar à avenida e que era caminho de volta para a Vila Progresso. Diria que os dois tios não eram de muita brincadeira! Mas gostavam de contar histórias e acho que é isso que cativava a criança: ouvir histórias! E tio João, o velho, era um típico contador de história... Fazia o ouvinte sentar em sua perna e gesticulava, contando detalhes. E tio João, o novo, não ficava atrás nessa de contar histórias. Tinha muito de meu avô, José, um descendente de italiano que adorava histórias, principalmente sobre sua infância. Mas seu filho João não contava histórias com ninguém sentado em sua perna. Fazia isso sentado no chão, no degrau da escada, para o “ouvinte” se sentir à vontade. Mas se colocasse um tabuleiro de dama em sua frente, mudava de fisionomia. Se concentrava no jogo e não permitia barulho, para não atrapalhar o raciocínio. E não gostava de perder, mas quando o adversário era uma criança, fazia questão de ensinar o lance certo, mesmo que isso provocasse sua derrota. Sua alegria era ver alguém que tivesse ensinado o jogo, vencendo outros adversários... Já fazem alguns anos que João, o novo, ou o padrinho de crisma se foi. Revi seu olhar sereno, seus cabelos brancos, o pequeno bigode da mesma cor e senti que este mundo acaba nos tirando pessoas de bem. Mas nos deixa a certeza de que, se alguém passou por aqui, e nos deixou marcas que não desaparecem é porque foram pessoas abençoadas. E ter tios com o nome João é uma dupla alegria. É a certeza de que seguindo seus passos a vida é carregada de êxitos e conquistas.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Te pego lá fora!!!

Tímido, medroso e assustado. Assim era eu nos primeiros anos de escola. Lembrar do Primário no Grupo Escolar Paulo Mendes Silva é um fato histórico, principalmente porque o prédio, na rua General Carneiro, esquina com a avenida Fernando Arens, não existe mais. Foi ali que fiz os quatro anos do Primário e, por causa deste jeito tímido de ser, pouco conversava com os colegas de classe. Outra diferença é que as carteiras comportavam dois alunos ao mesmo tempo. E, claro, minha conversa se restringia a este colega. As aulas tinham três horas de duração: eram das 11 às 14 horas, inclusive aos sábados. E, diante do meu "bom comportamento" era o escolhido pelas professoras para marcar o nome dos colegas que conversavam sempre que uma delas tinha que deixar a classe. Dona Benedita fazia pouco isso. No primeiro ano, por minha classe ser ao lado da Diretoria, sempre que dona Benedita precisava se ausentar, chamava alguma secretária da Diretoria para evitar "bagunça". Mas dona Odete tinha classe do outro lado do prédio, bem longe da Diretoria e todo dia tinha que deixar a classe. E lá ia eu escrever, no quadro-negro, o nome dos alunos que conversavam. Nos primeiros minutos de ausência da professora, a classe conseguia manter o silêncio, mas como só haviam meninos na classe (naquele tempo era primeiro ano A masculino, primeiro ano B feminino e assim por diante), a bagunça se fazia presente. Rezava para a professora aparecer logo, pois a gritaria era geral. Se não escrevesse os nomes na lousa, com certeza, levava bronca da professora e se fizesse o contrário, sofria ameaças: "tira meu nome daí senão te pego lá fora!!!" O nome ficava no quadro-negro e me preparava para o pior . Confesso que tremia de medo, mas me gabava de minha esperteza: terminada a aula, saía correndo da sala. Sabia que, por ser pequeno, de pernas curtas, não conseguiria ir muito longe. Quando ouvia o sinal, meu material estava dentro da bolsa. Rapidamente me levantava e já estava na rua... Meu amigo Amaury me dava cobertura. Quando soava o sinal, ele corria até o ameaçador para puxar assunto, distrair a atenção dele, assim eu podia sair rapidamente da escola. Era comum carrinhos de pipoca e raspadinha estacionados em frente ao portão da escola. Até porque, por onde saíam os alunos de um horário, entravam os do horário seguinte. E este era meu esconderijo: atrás de um dos carrinhos. Me colocava de frente para o portão, para ver o desafeto sair à minha "caça". Escondido atrás do pipoqueiro, seguia com os olhos seus passos. Enquanto ele subia a Fernando Arens, me procurando, eu descia a General Carneiro, entrava na Frei Caneca, sempre atento nas calças curtas azul-marinho, camisa branca e rumava para casa. Perto da Sifco entrava na avenida São Paulo e corria para casa. Esta caça, na verdade, acontecia toda semana, e foi sempre um risco que corri. Em casa, nunca ninguém soube disso. Chegava feliz, vibrando de alegria pela minha coragem de manter o nome do bagunceiro na lousa, apesar de não encarar uma briga. Tudo bem que era uma briga desnecessária, mas para os colegas de classe eu não passava de um medroso, de um fujão. Mas isso só fui analisar anos mais tarde. No dia seguinte nem olhava para a cara do "valentão", só comentava como tinha conseguido fugir da briga para o Amaury. Durante a aula, porém, minha preocupação era uma possível ausência de novo da professora e voltar a correr risco. E, claro, correr para me esconder...

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O caminhão da economia

O tempo passa depressa, mas tem coisa que não muda muito. Ainda hoje vemos caminhões ou peruas vendendo frutas e verduras na periferia da cidade, apesar do crescimento dos supermercados e da feira livre chegando a todas as regiões. Mas Vila Progresso, na década de 1950, tinha algumas coisas inesquecíveis: tinha o bananeiro, que passava duas vezes por semana, em sua carroça puxada por um obediente cavalo. E feira, na região, só acontecia nos domingos e haviam poucas mercearias por perto. Tinha também o peixeiro, seu Magatão, que passava sempre no final da manhã, mas que trabalhava com encomendas, já que o transporte dos peixes era feito numa sacola e não tinha muito jeito de conservar, simplesmente porque ele fazia seu trabalho numa bicicleta. Uma pequena balança servia para pesar o produto que era embalado num pedaço de jornal e lavado e limpo com cuidado em casa. Até hoje não se sabe porque, as crianças do bairro tinham medo deste homem sério e trabalhador que ganhava a vida vendendo peixes. Mas o que mais chamava a atenção da garotada e das donas de casa era o “Caminhão da economia”. Toda quinta-feira, por volta das dez horas da manhã, ele fazia a curva, descendo a rua Maestro Bovolenta e entrava na avenida São Paulo, passando defronte a minha casa e com o alto-falante a todo vapor e seu motorista cantando: “Dona Antonia vai chamar dona Maria... chegou, chegou o caminhão da economia...” Numa só frase, o sucesso estava garantido: donas de casa saiam com suas sacolas, rodeavam o motorista que descia rapidamente para atender a todas e, com seu sorriso banguelo nos lábios, ia pesando os tomates, contando as bananas para completar uma dúzia, separando os pés de alface. E a garotada rodeava o caminhão. Não com o desejo de ganhar alguma fruta, mas a vontade era esperar todas as mulheres receberem suas compras, pagarem as suas contas e o motorista entrar na cabine, ligar o microfone e esticá-lo para os garotos que se acotovelavam na porta para repetir a frase musical de maior sucesso no bairro em todas as décadas: “Dona Antonia vai chamar dona Maria... chegou, chegou o caminhão da economia...” E lá ia o homem que nunca tivemos a coragem de perguntar o nome, desaparecendo no final da rua, lá do lado da sede do Primavera, ainda em construção. Voltávamos para casa, repetindo a frase e rindo de alegria de ter “cantado” no microfone. E o desejo, agora, era esperar a semana passar rapidinho para novamente, na quinta-feira seguinte repetir a velha canção. Triste mesmo era quando o dia chegava ele não aparecia. Pior que isso, porém, era quando o horário de escola coincidia com a visita do “caminhão”. Aí não tinha jeito: era esperar as férias escolares para poder “saborear” a velha canção.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O presente

Dia das mães era sempre assim: seu Alcindo liberava o dinheiro no início da semana, e nós, os filhos, iniciávamos a pesquisa para saber o que comprar para dona Angelina. E a escolha nem sempre era fácil! Afinal, chegar a uma opinião só, com seis pessoas pensando diferente, realmente não era tarefa fácil. E os presentes não podiam custar muito: meia dúzia de panos de prato, uma toalha nova para a mesa da cozinha, uma panela de pressão que chegava ao mercado, um ebulidor para fazer café... Ana Maria, por ser a única mulher do grupo de irmãos, tinha a liberdade para chegar até nossa mãe e “pesquisar” o que ela queria ganhar. E dona Angelina tinha sempre a mesma opinião: “sejam obedientes, respeitem os mais velhos”. Claro que isso a gente fazia, mas nada mais justo do que presentear a mãe, no dia instituído pelo comércio. E tínhamos de segunda a sexta-feira para “checar” no mercado o produto e o preço, para ver se o dinheiro iria dar. Ademir, o mais velho, e que já ganhava algum dinheiro, se propunha a completar o que faltava, desde que não fosse muito dinheiro. E numa bela semana, a idéia do presente acabou sendo igual entre dois irmãos: eu e Ana Maria tínhamos visto o mesmo presente, no mesmo lugar e que recebeu a aprovação de todos em questão de segundos. Os dois que descobriram o presente, tinham, agora, a missão de checar o preço e verificar se havia, em alguma loja, um preço melhor. Pesquisa feita, presente definido, a ordem, agora, era comprar e definir quem faria a entrega do pacote. Mas este presente era diferente: um conjunto de latas pra guardar mantimentos. E comentamos que elas enfeitavam o balcão da loja, uma sobre a outra e que poderiam ser usadas desta forma em casa ou sobre o armário de cozinha, uma ao lado da outra. Já tínhamos a ideia do que iria em qual lata: a maior seria o arroz, a primeira abaixo dela, o feijão. E seguiam-se na ordem: açúcar, farinha de trigo e farinha de mandioca. Como eram cinco latas, imaginávamos que cada um entregaria uma, de acordo com o tamanho. Ademir, o mais velho, entregaria o cartão. Resolvemos, até, inverter a ordem de entrega: Alberto, o mais novo, entregaria a lata maior, Antonio, a outra, Osmar a do meio, depois eu e Ana Maria ficaríamos com a s menores. E fomos à compra e, ali, a surpresa e um ar de frustração... O vendedor foi ao depósito e voltou com uma caixa fechada, abrindo para nos mostrar o conteúdo. Imaginávamos que aquela era a lata maior, mas a surpresa é que ele retirou a lata de dentro da caixa, tirando a tampa da mesma, dentro dela, outra lata que, aberta, continha outra dentro e mais outra e mais outra... Olhei para Ana Maria com cara de surpresa e tive o mesmo retorno. Latas recolocadas uma dentro da outra, pacote feito, voltamos para casa, carregando um peso enorme. Difícil, agora, era saber como entregar para nossa mãe. Solução encontrada, no dia das mães, logo cedo, nos preparamos pra a entrega do presente. Dona Angelina tinha ido,como de costume, à missa das 5h30 e chegava em casa por volta das 7 horas. Quando abriu a porta da cozinha, deu de cara com os filhos, os seis, segurando ou pelo menos, encostando a mão no pacote. Claro que dona Angelina recebeu o abraço de todos, depois de sugerir que a caixa fosse colocada sobre a mesa, para que não ficássemos carregando tanto peso. Claro, também, que percebemos duas lágrimas de alegria escorrendo debaixo dos óculos. Claro, também, que quem abriuo pacote fomos nós. Cada um puxando um pedaço do papel, rasgando tudo. E claro, ainda, que Ademir retirou a lata de dentro da caixa, que Ana Maria tirou as outras latas de dentro da maior, que eu retirei as outras de dentro desta até que as cinco latas estavam dispostas sobre a mesa e que, agora, cada um pegou uma e entregou nas mãos de dona Angelina. Claro, principalmente, que seu Alcindo ficou num canto da cozinha, sorrindo, vendo a alegria de todos com um presente inusitado. Coisa que a gente nunca tinha visto antes...

sábado, 5 de maio de 2012

Noites de maio

No início da década de 60, as noites de maio eram festivas. Durante os 31 dias, dona Ana "puxava" o terço na casa de vizinhos e amigos da Vila Progresso. "A nós descei Divina Luz..." era assim que ela começava o cântico que abria a reza do terço em homenagem à Nossa Senhora. O sinal da cruz vinha depois do canto. E sempre, todo ano e toda noite de maio, o terço começava com esta música. Quando nós, crianças, ouvíamos o canto dos adultos, sabíamos que era hora de parar de brincar, se enfiar no meio da sala e participar das orações. Apesar da deficiência física - dona Ana foi uma das vítimas da paralisia infantil e tinha, como tem até hoje, dificuldade em caminhar - não se negava a ir nas casas e fazer orações em "louvor à Maria", como ela fazia questão de frisar. Dona Ana não se casou, apesar de ser uma moça bonita. Participava, na Paróquia de Vila Arens, da Congregação das Filhas de Maria. Só podiam participar moças solteiras. O uniforme era vestido branco, fita azul no pescoço e na cintura e um véu branco na cabeça. O padre sabia que uma mulher ia comungar se estivesse usando véu durante a celebração da missa. E todos sabiam distinguir quem era solteira e quem era casada. Véu branco, moça solteira; véu pr eto, mulher casada! Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida acompanhava a reza do terço que demorava, em média, uma hora. A família que recebia a imagem, preparava um altar, colocando uma toalha branca numa mesa, um vaso de flor e uma vela que ficava acesa durante a oração. Rezávamos o terço em pé, compenetrados. Mas era comum, nós crianças, olharmos para os adultos concentrados na oração e rirmos da cena. Olhos fechados, mão no coração eram algumas das maneiras de os adultos se concentrarem. Claro que as crianças não entendiam muito bem o que era tudo aquilo, mas às vezes nos sentíamos cansados ao rezar tantas Ave-Marias seguidas. Depois da reza do terço, dona Ana comandava o cântico da ladainha. "Kyrie eleison, Cristie eleison..." e todos nós repetíamos as palavras em latim. Terço rezado, ladainha encerrada, dona Ana marcava o local para o dia seguinte. E era exatamente às 19 horas que a oração começava. Até porque naquele tempo não tinha novela na televisão e o assunto das mulheres, antes da reza começar era exatamente a radionovela, transmitida pela rádio Nacional ou pela rádio São Paulo. Escolhido o local, saíamos em procissão, levando a imagem de Nossa Senhora. E éramos nós, as crianças, que nos colocávamos na frente da "procissão" até a casa onde a imagem passaria a noite. A dona da casa, onde houve a reza do terço, saía com a imagem e, na porta da casa da outra família, entregava a mesma. Novamente velas acesas, vaso com flores e altar montado, r ecebiam a imagem. Terminado o cântico que se iniciara na casa anterior, fazíamos o sinal da cruz e corríamos para a rua. Era hora de brincar até que as mães colocassem as conversas em dia. Por causa do vento frio, nossas mães nos vestiam com muita roupa. Tinha noite que usávamos até o pijama de flanela por baixo da roupa de passeio. Mãe da rua, balança-caixão, pega-pega, lenço atrás, eram algumas das brincadeiras. Mas o que eu gostava mesmo, durante o terço, era ficar lá na frente, pertinho de dona Ana, acompanhando as orações. Não entendia direito o porquê do problema na perna, questionava minha mãe se não tinha jeito de "operar para acabar com o problema". Mas nunca vi esta mulher reclamar. Eu tinha um certo orgulho por conhecer uma pessoa de fibra, de vontade, de dedicação. Gostava quando ela me chamava pelo nome, para ajudá-la a subir um degrau maior na escada. E quando passo por sua casa, mais de 50 anos depois, e a vejo no muro, com seus cabelos brancos, mas sem perder o jeito de andar, sinto um aperto no coração e uma saudade destes tempos que a gente não vê hora de passar, mas que gostaria de viver de novo...

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Eterna companheira

Você já pensou, durante sua infância, em pedir a Deus um companheiro ou uma companheira para a vida toda e detalhou os predicados que queria encontrar nesta pessoa? E quando conheceu uma pessoa e com ela começou a dividir sua vida, acabou esquecendo do pedido que fez? Você já percebeu que isso é comum na nossa vida? Só sabemos pedir as coisas a Deus? E o agradecimento é algo que só vai acontecer lá na frente, muitos anos depois - se é que lembramos de fazer isso! É comum na nossa vida pedir, pedir e pedir. A retribuição e o agradecimento acabam ficando sempre no esquecimento. Mas quando pedimos uma pessoa para nos acompanhar até o fim da vida, realmente, é um pedido delicado, difícil de imaginar. No mundo conturbado em que vivemos, quando não sei quantos por cento dos casamentos terminam por uma infinidade de incompatibilidades, ver relacionamentos se manterem por décadas realmente é uma dádiva dos céus. Diria que o meu casamento se inclui nesta lista de dádivas dos céus. Me lembro das minhas orações, dos pedidos que fazia a Deus. Imaginava que dificilmente encontraria uma mulher perfeita. Então pedia que ela tivesse mais predicados que defeitos, que fosse mais atenciosa, carinhosa, doce, meiga, sincera, e que me fizesse feliz. E ri do pedido que fiz: dizia que não queria uma mulher perfeita, mas gostaria que ela fosse... Imaginei até que estaria “driblando” Deus no meu pedido. E acabei achando que passaria o resto de meus dias completamente só. E existe tanta gente só neste mundo... Já percebeu? E digo só não porque não tem ninguém. Não posso dizer que as pessoas que escolheram viver só sejam egoístas, porque não quiseram dividir seu mundo com alguém. Mas não sei se a solidão é um bom caminho. E existe tanta gente só, mesmo estando com outras pessoas... Já percebeu isso? Existem mulheres com uma infinidade de predicados. Mas achei que não existiria uma do jeitinho que tinha sonhado. E hoje, 32 anos de união, percebo que Deus foi bondoso demais para comigo. Não só me deu a mulher da maneira como pedi, como também a fez linda. Sem querer, mais uma vez, enfrentar o poeta que diz que “me perdoem as feias, mas beleza é fundamental”, imagino que até neste ponto fui feliz. Rita de Cássia é assim um pouco de tudo ou muito de tudo! Bela por fora e por dentro. E se meu sonho se transformou em realidade, não esqueço – de verdade – de agradecer, praticamente, todos os dias, a Deus, a mulher que está ao meu lado. Seu sorriso me estimula a superar adversidades, seu olhar me ajuda a vencer os atropelos da vida, sua voz me faz derrubar as barreiras que este mundo insiste em colocar nos nossos caminhos. E vou superando, vencendo, derrubando, conquistando. As conquistas são sempre fórmula de um jeito gostoso de subir os degraus da vida. Não vou perguntar quantos você já subiu. Diria que subi muitos, mas ainda visualizo uma infinidade de degraus para cima, de onde estou. Recuar não recuo, não desço, não volto atrás. Até porque há uma mulher me ajudando a seguir em frente, a subir, a subir, a ir além. E quero que ela me acompanhe sempre. Todos os dias. E é este o pedido que renovo todos os dias a Deus, quando agradeço o que ele já me deu: que me permita a companhia de Rita de Cássia até o fim de nossas vidas. E Deus sempre foi um verdadeiro pai para mim... (homenagem à minha esposa, Rita de Cássia, que completa mais um ano de vida neste 3 de maio)