sexta-feira, 27 de julho de 2012

Decorando o catecismo

- És cristão? - Sim, sou cristão pela graça de Deus. - Qual o sinal do cristão? - O sinal do cristão é o sinal da cruz. E lá ia a catequista perguntando e o aluno respondendo, exatamente como estava no catecismo da Primeira Comunhão. Decoradamente! Certo ou não, a verdade é que terminávamos a catequese preparados, sabendo exatamente o que estava acontecendo e o que ia acontecer, principalmente no último domingo de outubro quando acontecia a missa de Primeira Comunhão. O curioso, nisso tudo, é que tínhamos realmente que decorar a lição. E tínhamos uma semana para fazer isso e era como se fosse “chamada oral”. A catequista apanhava o catecismo da mão do aluno – que não podia esquecer em casa, pois tinha que ir buscar ou ficava com falta naquele dia. Fazia as perguntas e a resposta tinha que ser exatamente o que estava escrito no catecismo. Se respondesse tudo, corretamente, passava para a lição seguinte. Até terminar o catecismo. Naquele tempo, em 1959, as aulas de catequese, na igreja de Vila Arens, ocorriam dentro da própria igreja, pois não existiam as enormes salas de hoje e, no porão, os espaços estavam tomados. A catequese era de segunda-feira à tarde e ia de agosto a outubro. Só “estava preparado” quem concluía o catecismo. Adilson Luis Colucci, que fazia o primário comigo, passou o catecismo inteiro umas cinco ou seis vezes: terminava e começava de novo. A catequista perguntava qual era a lição, se o aluno soubesse tudo, ela vinha com outra pergunta: “Sabe a lição seguinte?” Se soubesse ia em frente... - Quem é Deus? - Deus é um espírito perfeitíssimo, eterno e criador do céu e da terra. Pronto! Mais uma resposta certa, mais uma lição em frente... O curioso é que ficávamos atentos para decorar. E eu não era bom nisso. Foram inúmeras as vezes que saí frustrado da reunião, tendo que estudar, de novo, para a próxima aula, enquanto via Adilson deslanchar lá na frente... Me lembro que consegui completar o catecismo no início de outubro. E ainda vi Adilson passar por ele inteiro, mais uma vez. Não consegui chegar, na segunda vez, aos Sacramentos, mas fui aprovado na escola de Deus, na base do “decoreba”. E o silêncio nas reuniões era total. Principalmente por quem ainda não tinha sido perguntado, pois aproveitava as perguntas dos outros, para continuar estudando, sem tempo para conversar com o colega do lado. E no domingo marcado, com jejum desde a noite anterior, suando frio e vestindo terno azul marinho de calças curtas e gravatinha borboleta, recebi, no meu coração, o corpo de Cristo que o padre não dizia como faz hoje, pois a missa era em latim e a gente não entendia uma palavra do que ele rezava. Mas a gente rezava o que sabia...

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Lembrança

O galpão com pintura nova mostra que o local passou por uma reforma recente. De cada lado, duas residências antigas dão sinais de que, o galpão, apesar de aparentemente novo, já teve outra "cara" e que, antes, ali existia uma casa igual aos imóveis ali ainda existentes. E tive que parar ali, remexer em minha mente e recuperar fotos antigas que mantemos dentro de nós. E revi filmes de minha infância, recuperei fotos memoráveis que encontrei no arquivo de minha mente e senti uma saudade forte, uma vontade de entrar por aquele galpão e tentar encontrar a porta de meu quarto, as janelas da sala, a porta da cozinha. É que...é que... onde existe este galpão hoje, havia uma casa. E nesta casa moraram meus pais, meus irmãos e eu... A ausência do imóvel provocou uma pequena dor no peito que controlei para impedir que fosse maior. Senti que duas lágrimas iam rolar face abaixo, mas tomei fôlego. Senti que precisava ir em frente, que tinha que continuar, porque a vida não parava e nem parara naquele local. Já se passaram quase 33 anos que deixei o local para formar minha família atual. Já se passaram quase 25 anos que minha mãe se despediu de todos, certa de que cumpria sua missão, e 22 que meu pai foi em busca do grande amor de sua vida. E foi no intervalo da partida de um e de outro que a casa foi negociada. Até porque, dos seis filhos seu Alcindo e dona Angelina, um se ordenara padre, três já estavam casados e aquela casa ficara grande demais para meu velho pai e meus dois outros irmãos. E a casa passou a fazer parte de nosso passado... Não sei se o leitor consegue lembrar algo que já não existe mais. Lembrar uma cozinha, com pessoas conversando, enquanto dona Angelina preparava o almoço de domingo e seu Alcindo chegando do quintal com alguns pés de alface para a salada. E a verdura vinha da própria horta. Do quintal daquela casa, cujo terreno tinha mil metros quadrados e era ali que colhíamos verduras e muitas, muitas frutas diferentes: abacate, manga, goiaba, laranja, limão, caqui, pêssego, ameixa, jabuticaba. Enfim, uma infinidade de frutas que muita gente imagina que só existe na feira... E a casa virou saudade, virou lembrança. E aquelas lágrimas que disse ter tentado segurar, agora deslizaram face abaixo. E me lembrei, também, de uma conversa em família, quando comentei que chorava de saudade triste e fui acarinhado por um de meus irmãos que me garantia que "lágrimas não são de saudade triste, mas de emoção de compreendermos o quanto foi bom ter vivido aquilo." E percebi, então, que ele tinha razão. Que sempre que falamos em saudade, parece haver uma dor de tristeza dentro de nós, mas concluímos que ela não pode ser encarada assim: triste é não termos vivido, triste é passarmos em branco por aqui, triste é não termos compartilhado, triste é passarmos ao lado e não junto com os fatos. Aí meu irmão me puxa pelo braço, me mostra o céu azul, com nuvens formando imagens de felicidade, e completa seu pensamento, dizendo que, junto com tudo que vivemos existe sempre o sentimento de agradecimento. Claro que a gente não queria que o tempo passasse, que aqueles momentos passassem ou, hoje, a gente queria que voltasse... Mas - e este mas é fundamental - foi bom ter vivido tudo isso e estar aqui, neste instante, para lembrar. E a lembrança provoca emoções e reações diferentes em cada ser. Eu peço licença e desculpas a todos, olhar novamente para aquele galpão, visualizar em seu lugar minha antiga casa e chorar. Um choro de agradecimento a Deus por ter vivido ali...

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Capucheta e maranhão

Não tenho vergonha de dizer que jamais consegui fazer um papagaio ou pipa. Mas no meu tempo de criança, era papagaio mesmo! Nem quando meu filho era pequeno! Boa vontade, não nego, tinha, mas na hora de cortar o papel de seda, amarrar as varetas e de passar a cola, era um desastre. O máximo que conseguia fazer era empinar a pipa. Sempre acompanhava o trabalho de meu irmão Ademir. Depois ele me dava carretel e papagaio, aí, não tinha jeito: ele subia para o céu... Mas aquele que eu achava que era mais fácil de subir era o maranhão, feito com três varetas de bambu apenas: uma cruzando a outra e uma menor, mais abaixo. A maior das duas tinha um formato de arco. Elas eram presas uma à outra e a linha dava uma volta em ambas. Em seguida, colava-se o papel de seda, fazia-se o estirante, a rabiola e era hora de brincar. Mas domingo à tarde, quando Ademir saía com os amigos para a matinê e eu não o acompanhava, era um terror: queria empinar papagaio, mas não havia nenhum em casa. Até porque esta não era a brincadeira preferida de meu irmão mais velho. O jeito, então, era partir para algo diferente: uma folha de jornal dobrada ao meio, um recorte com a tesoura, formando uma espécie de bico, um estirante unindo as duas pontas, uma rabiola de papel e pronto: a capucheta já podia subir. Apesar de morar na região mais baixa da vila Progresso, o vento se fazia presente sempre, principalmente nos meses de julho e agosto, em pleno inverno. Por causa do grande quintal, ficava fácil colocar o papagaio ou a capucheta no ar. Ela não tinha muito recurso, subia cinco, dez, vinte metros, no máximo! Agora, o papagaio maranhão ia longe: carretel inteiro de linha. E a linha tinha que ser 24, comprada na lojinha da dona Duvica! Opção diferente era sair da missa, no domingo de manhã, passar pela feira e procurar algum maranhão à venda. Se não encontrava, sabia que não era tempo de papagaios e que os ventos eram fracos. O gostoso, ainda, era a competição: quem conseguia colocar o papagaio no ar em primeiro, quem conseguia fazer um mais bonito, quem conseguia mandá-lo mais longe, qual ficava mais tempo no ar... A alegria da brincadeira estava, exatamente, em sentir o domínio sobre o papagaio. Soltar a linha quando se percebe que o brinquedo está “puxando”, pois o vento é forte. Claro que muitas vezes o papagaio dava cambalhotas e era preciso recolher a linha e aumentar a rabiola. Mas estas dicas ninguém precisava falar, eu ficava de olho no movimento de meu irmão ou dos outros garotos da rua e aprendia rapidamente as ações. E era lindo ver o papagaio subindo, dançando no céu, de um lado a outro. E se sentir superior, em dominar o brinquedo. O triste – e isso ninguém conseguia fazer as lágrimas pararem de descer pelo rosto – era quando quebrava a linha e o papagaio ia embora, desaparecia do outro lado das casas, numa distância que não conseguia ver, pois as lágrimas embaçavam os olhos e atrapalhavam a visão. Só conseguia me acalmar quando vinha a idéia de fazer a capucheta. Mas a dor voltava a ser mais forte, quando o vento passava e a capucheta não saía do chão. Nem correndo de um lado para outro do quintal. Nem suando em bicas para ver aquele pedaço de papel voando sob meu comando. O jeito era sentar no portão, olhar para o céu e procurar um papagaio parecido com aquele que acabara de perder. Às vezes até torcer para alguma linha se quebrar para um papagaio cair bem ali, pertinho de onde eu estava. E lá ia o papagaio dançando no céu, subindo, circulando, bailando, balançando, subindo, rumo às nuvens, rumo ao céu azul, rumo a um sonho inatingível!

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Corte de cabelo

Nem sempre as coisas que minha mãe mandava fazer eram aceitas imediatamente por mim e meus irmãos. Às vezes, se era para dar um pulo no armazém do seu Valentim, a gente já dizia “manda meu irmão”. E dona Angelina não conseguia ficar brava, mas sabia que, um minuto depois a gente se arrependia do que dissera e corria ao armazém. Culpar outros por alguma coisa mal feita era algo que dona Angelina sabia quem dizia a verdade ou não. A vida sempre ensina que “o mais novo é sempre o culpado”, já que em brincadeira de criança mordomo não tem vez, principalmente quando são crianças que moram em bairro afastado do Centro... Mas dona Angelina, com seus olhos azuis, vislumbrava a verdade dos fatos e sabia quem era inocente e quem era culpado. Mas se tinha algo que não dava para “escapar” era na hora de cortar o cabelo. E dona Angelina fazia questão que a gente não deixasse o cabelo crescer demais. Primeiro porque os Beatles ainda não existiam e segundo porque “cabelo comprido é coisa de mariquinha”... Dinheiro trocado no bolso lá íamos para o salão do seu Waldemar. Na verdade, eu não gostava muito de ir cortar o cabelo, principalmente porque não gostava muito de conversar e porque seu Waldemar vivia perguntando coisas, contando histórias. E eu não via a hora de levantar daquela cadeira... Gostava de ouvir o barulho do motorzinho passando pela cabeça, cortando o cabelo. E os tipos de cortes eram variados: a gente tinha que cortar “topete” que eu odiava, mas que não tinha como fugir dele: criança tinha que usar o corte “topete”. Meia dúzia de fios de cabelo na frente e o resto o motorzinho cortava. Outro corte que a gente gostava, mas dona Angelina achava que crescia rápido e logo tinha que pagar de novo era o corte “escovinha”. Para justificar o crescimento rápido, ela dizia que este tipo de corte de cabelo a gente poderia usar quando estivesse no Quartel. Por último, o estilo “americano”, quando o motorzinho “tirava” dois ou três centímetros do cabelo, na parte debaixo, depois a tesoura reduzia o volume todo e penteava-se de lado, com uma divisão no lado esquerdo da cabeça. Este corte era usado para quem já estava trabalhando, pois ficava mais “com cara de homem”. Mas depois de um tempo penteava-se tudo para trás e, com o pente dava uma “puxadinha” em uns fios de cabelo que caíam na testa. Só para ver se as menininhas olhavam para a gente. Mas não me lembro de pessoas tirando sarro dos cortes de cabelo que usávamos. Primeiro porque seu Waldemar cortava direitinho e era uma pessoa paciente. Quantas e quantas vezes ele teve que parar o corte, pois a gente tinha vontade de ir ao banheiro e não podia esperar. E seu Waldemar, pacientemente, esperava pela gente. Dava vontade de ir embora, mas a loção de barba que ele usava para desinfetar a ação da navalha era suficiente para fazer a gente “ir até o fim” no corte. Seu Waldemar só conheci na infância. Primeiro, com um salão na avenida São Paulo, na casa da família Motta, depois quando construiu o salão na frente de sua casa, na rua da Várzea. Depois disso, na metade da década de 60, quando ainda curtia a adolescência, o salão visitado era dos irmãos Durães, na avenida São Paulo, perto da Sifco. Ali o corte de cabelo tinha um gosto especial: tinha jornal para se ler ou revistinha do pato Donald ou do tio Patinhas. E isso a gente podia levar até a cadeira na hora do corte. Isso significava que não precisava ficar conversando com ninguém. Fazia de conta que estava lendo e pronto! E o barbeiro sabia respeitar a vontade do freguês...