segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Torresmo e Nardo

Vida de criança não tem jeito, deixa marcas, deixa lembranças inesquecíveis, deixa personagens que se misturam, se confundem na mente infantil, além de provocar medo e preocupação. E dois personagens fizeram parte de minha infância que ainda surgem em minha mente e, agora, me provocam riso e questionamentos: onde estão Torresmo e Nardo? Torresmo era um homem de baixa estatura, não muito gordo, mas para uma pessoa que se vestia como pobre estava muito acima do peso. Passava praticamente todos os dias em frente à minha casa, na Vila Progresso, e vinha com um chapéu velho e rasgado na cabeça, camisa abotoada toda torta, uma blusa vermelha – e me lembro da cor, pois era sempre a mesma... – toda desabotoada, calça também rasgada e um sapato tão velho quanto o chapéu, mas a gente percebia rasgado dos lados. Nas mãos, ele tinha sempre duas sacolas e vinha não se de onde, mas seguia para a região do Jardim do Lago. Não sabíamos o que fazia. Como criança, imaginávamos que as sacolas tinham coisas que ele ganhava, como pedinte. Mas o comentário geral era de que Torresmo era muito rico e tinha algumas casas alugadas. Claro que isso nunca foi confirmado, mas me lembro que se alguém mexesse com ele, os palavrões ecoavam pela rua, assustando mães que saiam às portas, chamando por seus filhos. Entrávamos correndo em casa assustados com a reação do homem. No dia seguinte, quando ele aparecia na rua, para evitar confusões, entrávamos em nossas casas, esperando que ele passasse. E ele passava, olhando de um lado e de outro, procurando alguém. Nardo já era diferente de Torresmo: vivia mais na região da Vila Arens. Usava um quepe surrado que a gente imaginava ser da Polícia Militar e o uniforme rasgado também da mesma corporação. Um apito na boca era suficiente para Nardo se posicionar no meio da rua e “comandar” o trânsito. Com seus vinte e poucos anos, Nardo levava a vida cuidando de um trânsito de poucos carros e muitas bicicletas e sua alimentação era proporcionada por donas de casas que tinham pena do moço que, muitas vezes, encontrei dormindo nos bancos da praça da igreja da Vila Arens. Não me lembro de como e quando estas pessoas desapareceram de minha vida, mas no trânsito complicado de hoje em dia, a lembrança de Nardo me faz sorrir, imaginando que ele solucionaria os problemas. Já de Torresmo, me lembro das brincadeiras de crianças e quando a mãe de alguém chamava, a gente ria e dizia “vai ver o que sua mãe quer, senão a gente chama o Torresmo...” Rindo ou com medo, a verdade é que num segundo o chamado era atendido rapidamente.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Os aniversários onomásticos

A palavra pode parecer estranha, de difícil entendimento, mas desde pequeno me acostumei com ela. O pequeno que quero dizer é quando eu tinha 9 anos, fiz a Primeira Comunhão e entrei na Cruzada Eucarística Infantil de Vila Arens. Ali, duas vezes por ano tinha aniversário onomástico para comemorar. E já aprendíamos o significado desta festa: antigamente quando os seminaristas eram ordenados padres, trocavam de nome, significando que para se dedicar a Deus era necessário uma mudança total: a começar pelo nome. Dificilmente sabíamos o nome de batismo do padre, mas apenas o que adotavam após ordenação, assim como acontece com o Papa. Apenas após o Concílio Vaticano II é que a mudança de nome não se fez mais necessária. As duas comemorações na paróquia aconteciam no dia primeiro de abril, dia de São Hugo e 15 de novembro, dia de São Alberto Magno. Claro que Padre Hugo e Padre Alberto eram homenageados pelas diversas pastorais da igreja. O primeiro era coadjutor e o segundo o vigário. E pelo menos dois meses antes, dona Leonor, uma das dirigentes da Cruzada, reunia as cerca de 30 crianças e começava a realizar ensaios para apresentações no Salão Paroquial de Vila Arens. E ela era rigorosa nos ensaios, não permitindo brincadeiras, mas exigindo que decorássemos os textos. Durante a apresentação, ela ficava ao lado da cortina, como “ponto”, soprando as palavras que geralmente esquiamos. E era no palco do Salão Paroquial que nós, crianças, junto com outras pastorais, como congregados marianos, apostolado da oração, filhas de Maria, prestávamos nossas homenagens: uns com pequenas peças teatrais outros com grupos de música ou pequenos corais e preenchíamos a noite de homenagens que começava com a missa festiva na igreja e continuava no salão paroquial, completamente lotado, principalmente pelos pais orgulhosos de verem os “atores” se apresentando. Mesmo com toda minha timidez, eu conseguia subir ao palco e me transformar em ator. As peças de sucesso da Cruzada eram “Uma festa gorada”, “A chuva e o bom tempo” e “Os tamancos do diabo”. A primeira mostrava um grupo de meninas preparando a festa de aniversário da professora. Enquanto sorteavam num canto da sala quem faria o que, um grupo de meninos invadia a sala e comia o bolo, frustrando a homenagem final. A segunda mostrava a preocupação das mulheres com roupas no varal com a chuva enquanto outras torciam para que a água caísse e salvar a lavoura. E a terceira, onde eu era o personagem principal, pois me vestia de Diabo, era levar uma moça ao pecado. E os pecados eram os sete capitais: Soberba, Avareza, Luxúria, Ira, Gula, Inveja e Preguiça. E decorávamos estes pecados com facilidade, já que nas aulas de Padre Hugo, ele “criava” fórmulas para a decoração: escolhia a primeira letra de cada pecado e formava a palavra “saligip”. Na semana seguinte, sabíamos os pecados de cor. Mas na apresentação eu precisava o máximo cuidado, pois, encerrado o “espetáculo”, descíamos do palco e íamos cumprimentar o padre aniversariante e que estava sentado na primeira fileira. Dona Leonor já me orientara antes a minha reação: se o padre mostrasse o crucifixo, o diabo tinha que correr de medo. E eu desaparecia rapidamente das vistas do padre, me escondendo atrás das cortinas. Mas o tempo não para de caminhar. Depois de alguns anos, o salão virou o Cine Vila Arens, mas fechou as portas, foi reformado e voltou a ser Salão Paroquial, mas de menor tamanho. A saudade que ficou nos faz viajar pelos palcos da existência nos transformando em atores às vezes sem querer, mas a recordação dos ensinamentos passados pelas pessoas mais experientes mostra que tudo o que vivemos no passado é motivo de enriquecimento em nossas vidas.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Tempo!

Quando a noite bateu forte com toda sua escuridão, o dia já tinha caído, nocauteado pelo tempo. O piscar das estrelas me fazia refletir sobre a necessidade ou não de surgir a lua. Pensava comigo: para que pedir a lua se já tinha as estrelas? E elas estavam ali, com seu brilho, como se fossem lâmpadas de árvores natalinas, num constante pisca-pisca! Me lembrei dos anjos, carregando as estrelas, me lembrei do sobe e desce celeste e me dei conta de que, a cada movimento, a vida vai passando. Senti um calafrio na espinha ao imaginar um dia a menos na minha existência, mas percebi que não tinha como impedir o passar do tempo. Afinal, com toda evolução do ser humano, ninguém tinha inventado, fora do cinema, a máquina que pudesse parar ou fazer o tempo retroceder. Imaginei na possibilidade de recuperar tempo perdido, mas me dei conta de que não se recupera o que não volta. Quis sorrir com minha conclusão, mas senti que poderia sofrer com a mesma situação e me contive! Vislumbrei a chegada da madrugada como fonte de inspiração aos poetas, mas a ausência da lua reduziu o número de linhas escritas pelos sonhadores que não querem perder tempo buscando o sono. E quando o sol apareceu anunciando que o novo dia já era quase adulto, decidi que não havia mais tempo a perder, que era fundamental aproveitar o calor da natureza e buscar o calor humano, mesmo com a pressa de todos em buscar seu trabalho ou de suas conquistas. E conclui que depende do ponto de vista de cada um a forma de como se aproveitar o tempo. A vida não espera a decisão das pessoas. Ela vai caminhando, avançando, passando... E se o poeta já disse que “a vida passa no meu cigarro, quem tiver pressa que arranje um carro...” é fundamental saber fumar ou dirigir de acordo com os sonhos a serem realizados!

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Vida!

Passa das 20 horas deste dia 3, véspera de meu aniversário, quando dou entrada no setor de emergência do hospital. O batimento cardíaco está a 151 por minuto. O primeiro eletrocardiograma constata isso! O movimento é intenso no local, com médicos e enfermeiros cuidando de pacientes que chegam... 155... Médicos se reúnem e decidem aplicar uma dose de 6 mg de Ademosina, visando o batimento retomar o compasso normal. 81... 85... 144... Frustração! Na outra maca, outro paciente, outra médica: “ergue o braço direito... mais alto... mais... ergue o esquerdo... o senhor bebeu hoje?” As respostas são ininteligíveis... 155... O calor é intenso, sinto meu corpo ferver, o barulho do equipamento que monitora meu batimento cardíaco não me deixa dormir... 144... Médicos conversam, discutem. Se a primeira dose do remédio foi às 21h15, sinto que os médicos têm pressa de resolver meu problema. São 21h35, batimento a 155, quatro médicos se aproximam de mim, enfermeira com 12mg de Ademosina. Expectativa é da solução do problema: 120, 110, 91, 85... 144... Frustração! Os médicos se afastam, imagino que uma dose nova do remédio não é aconselhável, mas não questiono os médicos. Mais pacientes, mais questionamento, mais silêncio dos pacientes. “O senhor está com dor de cabeça?... Que horas o senhor caiu”. Não consigo ouvir as respostas, o equipamento que monitora meu batimento cardíaco me impede disso... 155... “Doutora preciso ir embora antes da meia noite. Amanhã é meu aniversário”, tento induzir a equipe médica de que é importante uma solução para meu caso. Dra. Danielle sorri, troca ideias com Dra. Carol e às 22hs45 recebo uma dose de remédio na veia. “Vamos tentar reverter isso”, me diz a primeira. “Aplica a dose bem devagar, deve demorar dois minutos...” A enfermeira me diz que vai fazer melhor e conclui a medicação três minutos depois... 155... Me remexo na maca, meu corpo começa a pedir um banho, o barulho do equipamento continua dizendo que estou vivo... 132... 120... À distância as duas médicas olham para o monitor, não para mim. Tento dormir, uma ambulância estaciona do lado de fora, com a sirene ligada. Mais um paciente. “Que horas são?”, pergunto a uma enfermeira. “23h45”, diz ela e se afasta. Quero companhia! A solidão do lugar me deixa apreensivo... 98... “Conseguimos reverter”, me diz a Dra. Danielle, “vamos te mandar para casa, sua esposa deve estar preocupada lá fora!”. Respiro aliviado. O equipamento é desligado, fios ligados a meu corpo retirados. Me levanto com a ajuda de uma enfermeira e deixo a emergência! Apoiado pela minha esposa saio às ruas, os carros passam, a madrugada já vai alta. Passa das 2 horas do dia 4. Estou vivo!

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Novo caminho

Tem coisas na vida da gente que marcam profundamente nossa existência. Surgem pessoas que passam por nosso caminho e não são esquecidas facilmente. Alguém já deve ter ouvido falar da “Maria dos Pacotes”, que foi alvo de reportagem na imprensa. Surgiu também o “Miguel fala ó”. Na minha infância o que marcou – e por motivo especial – foi dona Nenê. Toda semana ela passava por minha casa, sempre no período da manhã, quando minha mãe corria prá preparar o almoço. Sentava numa cadeira junto à porta da cozinha, enquanto dona Angelina caminhava pelo local. Dona Nenê não tinha mais do que 40 anos, imaginava eu, nos meus 9 ou 10 anos. E chegava carregada de sacolas velhas, com pacotes dentro. Caminhava com dificuldade por causa do peso que carregava a caminho de sua casa. Às vezes, enquanto eu brincava na rua e via que dona Nenê vinha vindo, saía correndo pra dentro de casa. Não com medo da mulher que vinha vindo, mas porque ela sempre chegava no momento em que eu já deveria estar almoçando para ir à escola. E corria afobado, com medo de perder a hora, mas dona Angelina já tinha providenciado tudo: comida no prato esperando por mim... As histórias de dona Nenê giravam sempre em torno de pessoas que as duas conheciam, algumas delas, parentes da pobre mulher. E dona Angelina, enquanto conversava, não perdia o rumo das coisas que vinha fazendo e de repente aparecia com um prato pronto de comida. E dona Nenê agradecia com um sorriso nos lábios e comia rapidamente, esquecendo um pouco a conversa. Alimentada por minha mãe, dona Nenê dizia que precisava ir embora para ajeitar as coisas em casa. Muitas vezes eu a acompanhava até o portão ela saia segurando as sacolas que, às 10 horas da manhã, já estavam cheias, graças ao coração das pessoas. Claro que as coisas na vida da gente passam e nem sempre nos lembramos de quando tudo mudou. Um dia, quando almoçava para ir à escola, me lembrei de dona Nenê que fazia tempo que não aparecia. Perguntei a minha mãe o que tinha acontecido, se ela estava doente e, afinal, quem ela era. Minha mãe me olhou nos olhos, sorriu um sorriso doce que ela costumava fazer sempre que tinha algo especial a dizer e falou: “Dona Nenê não vem mais aqui, partiu para outra cidade. Seu filho tinha ido trabalhar fora, agora casou e tem como sustentar a mãe que morava num barraco ali perto da vila Esperança.” Terminei a refeição, apanhei o material da escola e, no caminho, fui recordando da história desta mulher que pouco sabia. Pobre, vivia sozinha num barraco à espera de dias melhores. Coincidência ou não, morar na Vila Esperança significava, para ela, sonhar com dias melhores. E foi isto que o destino lhe proporcionou. E sorri ao imaginar que minha mãe tinha ajudado esta mulher durante toda dificuldade que ela passara. O barraco talvez tenha sido ocupado por outra mulher, esperando uma vida melhor!