terça-feira, 31 de janeiro de 2012

No Cine República

As tardes de domingo, no início da década de 1960, eram diferentes das de hoje. Completamente! Começavam logo após o almoço, passavam pela matinê no cine República e terminavam com o resultado da rodada do Campeonato Paulista. De preferência com uma vitória do Palmeiras sobre o Santos. O único esquadrão que conseguiu enfrentar o time de Pelé naquela década.
Mas a matinê no cine República era especial. O movimento na rua Barão do Rio Branco, na Vila Arens, começava logo depois das 13 horas. A garotada se aglomerando para ver os cartazes dos filmes, mas já comentando o seriado do domingo anterior. O filme do dia perdia a importância, principalmente quando o seriado era do Roy Rogers ou do Flash Gordon.
Quando as portas do cinema se abriam, a correria era geral, sempre em busca de um melhor lugar. Um saquinho de pipoca na mão, não raro era ver uma delas voando pelos ares em busca de uma cabeça. E sempre eram os garotos lançando suas pipocas para as meninas. Até a hora de as luzes se apagarem. Uma caixinha de Mentex ou um drops Dulcora serviam para o início do papo junto à garota.
E quando as luzes se apagavam, a gritaria era geral... mais pipoca voando, garotos assoviando loucamente, saquinhos de pipoca estourando até que Cid Moreira começava a apresentar o Canal 100, com notícias de 10, 15, 20 dias atrás. Não importava! O que valia era o trailler que viria logo a seguir. E mais gritaria!!!
E dá-lhe filme: Mazzaropi, com seu Jeca Tatu, O Gordo e o Magro; Oscarito e Grande Otelo; O Zorro e o Tonto e o sempre vibrante Tarzan. Até que aparecia escrito “Fim” ou “The End”. Mas ninguém saía do lugar: era hora do seriado.
Explico: eram os seriados que deixavam os cinemas lotados: um filme dividido em 12 ou 15 pedaços, como estas novelas que a Globo transforma em 150, 200 capítulos.
Lembro que Jundiaí já teve sete cinemas: Ipiranga, Marabá, Polytheama, Vila Arens, República, Alvorada e Vitória. A censura do filme era, obrigatoriamente, livre, principalmente na matinê. Se aparecesse um filme proibido para menores de 10 anos, era confusão certa na porta do cinema.
E lá vinha o seriado...
O público vibrando com a rapidez do mocinho que apanhava, apanhava, apanhava – mas saia vencedor.
E o seriado terminava assim: to be continued! Pronto! A garotada se levantava correndo para a porta do cinema, reclamando das pulgas, mas comentando, com alegria, o que havia rolado na telona.
Era a hora de procurar a garota paquerada durante o filme e tentar acompanhá-la até sua casa. Mas a frustração era grande: do outro lado da rua, a gente avistava o pai ou o irmão mais velho e mais forte que nós, esperando por ela.
E lá ia Ademir na frente e eu correndo, tentando alcançá-lo. A frustração por não conseguir acompanhar a menina terminava no portão de casa, quando corríamos para saber como estava o jogo do nosso Palmeiras. Nem sempre era necessário perguntar: o sorriso ou o olhar sério de nosso pai era referência para o placar. Tanto eu quanto o Ademir nos acotovelávamos junto ao único rádio da casa, instalado na sala, para acompanhar os minutos finais da partida. E ao final do jogo, com o sol caindo do outro lado do morro, a hora era do banho ou de brincar na rua. Brincadeiras como “mãe da rua”, “batatinha frita” ”três mocinhos da Europa” ou “estátua”.
Coisas que não existe mais hoje, coisas que marcam, que deixam saudade. Uma saudade gostosa, que faz a gente se recordar feliz. Que faz a gente entrar na máquina do tempo, tentando não voltar aos dias atuais. Mas é bom estar aqui hoje, é bom saber que enchemos nossas vidas de coisas boas, de coisas que não voltam mais, mas que estão sempre vivas. Presentes dentro de nós!!!

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Conquista sem prova

Tem coisas na vida da gente que se eternizam em nossa memória, mas outras fazemos questão de ignorar. Literalmente, apagamos de nossa mente. As lembranças ruins fazemos questão de esquecer, mas as coisas boas, doces e belas, transformamos em quadro, penduramos na parede de nossa memória e mostramos ao mundo todo...
E lembranças da infância acabam sendo estes quadros que emoldurei acima. Comer jaboticaba no pé, fazer o mesmo com goiaba, laranja, manga. Realmente tudo isso tinha um sabor especial. Alguém me disse um dia que pessoas da cidade, hoje, imaginam, por exemplo, que goiaba é uma fruta que dá na feira, se surpreendem ao ver um pé de mamão...
Mas dizer que já apanhei o abacate do pé, cortei-o ao meio, joguei fora a semente e comi, ali mesmo, na casca, parece uma deslavada mentira, mas é a mais pura verdade. O sabor da fruta é outro... Imagino que seja por causa da alegria de poder saborear a fruta, colhida da árvore. Na hora!!!
Mas tem lembranças, como já disse, que o personagem não quer se lembrar mais, mesmo que, 30 ou 40 anos depois, isso ainda seja motivo de gozação. Mesmo que seja uma brincadeira entre irmãos, hoje todos de cabelos brancos.
Quem já comeu biju conhece seu gosto. E lá pelo início da década de 1960 do século passado (imagino que tenha que identificar isso assim, pois já mudamos de século e de milênio e muita gente não se deu conta disso ainda...), meus irmãos e eu fazíamos uma espécie de competição para ver quem tirava mais biju na roleta. E biju, para quem não viveu naquele tempo, era vendido por garotos na rua, com um assobio especial que conhecíamos de longe. O biju ficava dentro de um cone e a tampa era uma roleta que girávamos para ver quantos conseguiríamos comer ou ganhar, pagando apenas por uma “girada”.
Dizer que jamais tirei mais do que um biju, talvez ninguém acredite, mas dizer também que jamais ganhei uma rifa das milhares que comprava (com o dinheiro de meu pai) naquele tempo, talvez o leitor tenha certeza de que estou falando a verdade.
Mas o dia, a hora e o mês, com certeza não me lembro. O moço do biju assobiou na rua e lá foi Osmar correndo tentar a sorte. A roleta do cone tinha 50 números imagino, 40 eram o número 1, dois o número 2 e o restante um de cada, do 3 até o 9, número maior para quem conseguisse a “proeza” de fazer a roleta parar no número desejado.
Me lembro que brincava no quintal com Ademir, quando ouvimos o barulho do portão batendo e já tínhamos certeza que Osmar estava de volta com o único biju que ganhara. Mas o pequeno Osmar, com seus seis ou sete anos, entrou em casa chorando, com as mãos entrelaçadas, coladas no peito e algum fagulho de biju, grudados na camisa. Dona Angelina, antes de perguntar porque chorava o pequeno menino, o fez respirar fundo e parar de se lamentar.
Refeito da corrida da rua até dentro de casa, Osmar, entre novos soluços e frustração disse que havia tirado nove na roleta, com direito, claro, a nove bijus. De posse de todos, por ter mãos pequenas, resolveu aproximar a “fatura” do peito e correr, com um louco para casa, feliz da vida. A corrida, o vento e as mãos apertando o biju contra o peito, na ânsia de contar a todo mundo o que conseguira fazer, transformou tudo aquilo em fagulhos que o vento levou.
E os bijus desapareceram de suas mãos, de seus olhos. A alegria de querer contar o que fizera, se transformou em tristeza ao ver que o feito virou nada. E o sabor do biju foi amargo, ao sentir as lágrimas rolando pela face e passando pelos lábios infantis, que não entendiam porque aquilo acontecera daquele jeito.
Mesmo que não tenha conseguido provar o seu feito aos irmãos, acabou sendo consolado por Ademir que, rápido, correu à rua, rolou a roleta três vezes, pegou os três bijus que conseguira e os entregou ao pequeno irmão, que sufocou as lágrimas e engoliu a compra como se fosse uma medalha de ouro, conquistada numa olimpíada.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Gravatinha borboleta

Terno azul-marinho, com calça curta, claro, camisa branca de manga comprida, gravatinha borboleta da cor do terno e meias três-quartos. Este era o uniforme que os meninos da Cruzada Eucarística Infantil usavam nos primeiros domingos do mês, quando ocorria a reunião geral. As meninas tinham de usar vestido branco, boina da mesma cor e meias iguais a dos meninos. Quem não estava uniformizado não podia nem entrar na fila para a missa das 7h30. Isso tudo, no final de 1959 e início de 1960.
Confesso que sofri muito nos primeiros meses em que comecei a fazer parte da "cruzadinha". Sempre de paletó, sempre de calça curta e, nos demais domingos, camisa também de manga curta. O sofrimento sempre ocorria no primeiro domingo. Aquela gravatinha apertando a garganta... Se não bastasse isso, o jejum antes da comunhão era de três horas, o que significava que tínhamos de ir à missa sem poder tomar o café da manhã.
E isso tudo me deixava fraco! Me lembro que num desses primeiros domingos o sofrimento foi maior. Suava frio! Fraqueza por causa da fome e o calor se misturava com o frio do medo de desmaiar ou cair no banco, fazendo barulho como já tinha visto acontecer com outras crianças em outros domingos.
Queria sentar, mas queria me mostrar forte e me manter em pé. As pernas tremiam, olhava para as pessoas para ver se alguém se compadecia de mim, mas todos estavam atentos à missa. Foi quando senti duas mãos segurando meu braço direito, dizendo para eu me sentar, para não cair. Olhei assustado e, de branco que estava, fiquei vermelho. Maria Josefina, uma das coordenadoras da Cruzada e que a gente chamava de "zeladora", me fez sentar. Maria Josefina era responsável pelos meninos durante a missa.
O susto me fez melhorar, mas minhas pernas tremiam tanto que me sentei. Maria queria me levar à Sacristia para tomar água, mas eu já não conseguia me segurar em pé. Maria de Lourdes, irmã de Maria Josefina, era a responsável pelas meninas - a gente chamava só de Lourdes para não confundir os nomes -, chegou com um copo de água. Não queria beber, pois disse que ia comungar. Maria teve de explicar que água não quebrava jejum. Me lembrei do catecismo para a primeira comunhão e devorei a água toda.
Senti que minha cor foi voltando ao normal. Quando a missa terminou, o comentário era geral: todo mundo falando o que tinha acontecido comigo. Me chamavam de protegido das "Marias". Até padre Hugo, que estava celebrando a missa, veio falar comigo. Me senti, na verdade, o mais importante de todos, já que os "cabeças" da Cruzada estavam preocupados com a minha situação.
A partir deste domingo, quando me imaginava passar mal na missa, olhava para o banco de trás, onde Maria estava, e me sentava, com ela concordando com a cabeça.
As "Marias" foram exemplos de vida a serem seguidos. Maria Josefina sorria o tempo todo, sempre atenta às crianças. Minha satisfação era de nunca ter levado uma bronca. Maria de Lourdes, eu achava mais séria, mas muito mais didática. Tinha a outra irmã, mais nova, Maria Tereza, a mais brincalhona das três, mas por quem nós tivemos que rezar muito quando pegou meningite, e fizemos uma festa quando reapareceu nas reuniões completamente curada.
Claro que o tempo foi maldoso ao afastar pessoas que se quer bem, mas a saudade é a forma exata de reaproximar o ser humano. Nem que seja num leve toque de memória!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Dor de dente!

Criança que é criança tem sempre seus medos, suas inseguranças, suas dúvidas. E tem coisa que nem depois de chegarmos à vida adulta, conseguimos mudar esses medos, esses inseguranças, essas dúvidas. Uma delas é encarar a cadeira de dentista. Minha memória mostra claramente que no meu primeiro ano primário, exatamente em 1958, quando frequentava a sala de aula de dona Benedita, no Grupo Escolar Paulo Mendes Silva, que conheci o doutor Arnaldo Lemos. Os poucos cabelos que tinha eram brancos, me lembro bem, assim como visualizo seu bigode e um não sei porque, sorriso constante nos lábios.
Talvez seja dentro deste perfil que jamais tive medo de sentar em sua cadeira de dentista. Seu jeito calmo e tranquilo de lidar com as crianças, com certeza, me deu esta segurança. Não era por ser um “homenzinho” que queria dar uma de “macho” e não chorar na cadeira, mas quando ele ligava aquele motorzinho – que tem tanto adulto hoje que treme demais só de ouvir o barulho – me sentia calmo, sem medo de chorar.
Me lembro que a sala do dentista ficava próxima à diretoria, mas não esqueço de seu consultório na rua Olavo Guimarães, num prédio que hoje não existe mais. Foi ali também que tive de me sentar em sua cadeira para uma obturação num dente de leite. Sem medo, sem dor, sem susto.
Doutor Arnaldo era desses homens que gostavam de contar histórias e eu, como criança, era apaixonado por elas. Sempre fui de ouvir muito!
E antes de colocar o motorzinho na boca do paciente ele, sem trocadilho, contava pacientemente longas e calmas histórias. E o bruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum do motorzinho entrando e saindo da boca, sem dor.
Acho que não era o motorzinho a causa da minha calma, mas sim as histórias que, sentado ao meu lado, doutor Arnaldo contava.
Jamais quis ser dentista, nem me imaginava como tal, mas confesso que ria – e ainda faço isso – quando alguém diz que tem medo do motorzinho do dentista...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Nos tempos da Cruzada

Terno azul-marinho de calça curta, gravata borboleta, cabelos bem penteados e lá ia eu, membro da Cruzada. É, Cruzada mesmo, Cruzada Eucarística Infantil da Vila Arens, dirigida pelo padre Hugo! Meninos e meninas com idades entre 9 e 14 anos tomavam conta de boa parte da igreja, durante a missa das 7h30, conhecida como Missa das Crianças, no início da década de 1960. Nos primeiros domingos do mês, é que todo mundo na igreja percebia nossa presença. Neste dia havia reunião geral e a presença de todos era obrigatória. E de uniforme! Uniforme dos meninos era terno azul,  calças curtas, camisa branca, meias três-quartos. A calça curta realçava a meia três-quartos. Meninas usavam vestido branco, meias três-quartos e uma boina, também branca, na cabeça. Na frente, Roberto Batista, presidente da Cruzada, subia a escadaria da igreja, carregando a bandeira. Passávamos pelo corredor central, percebendo o olhar atento dos demais fiéis, presentes à cerimônia. Batista subia os degraus do altar-mor e colocava a bandeira no pedestal e ela ali ficava até o final da missa.
Participávamos da cerimônia compenetrados, atentos, rezando o tempo todo, cantando o tempo todo. Como a missa ainda era rezada em Latim, levávamos livretos de cânticos e nossa voz ecoava pela nave católica. Me arrepiava entoar os cânticos, sentia o olho lacrimejar, a voz embargar...
Apesar do rigor do padre Hugo, sentia falta das atividades semanais se não participasse da missa. E se participasse de uma que não tivesse todo o grupo, me sentia perdido, deslocado.
Me lembro das três Marias que comandavam o grupo e eram conhecidas como "zeladoras". Maria Josefina, Maria de Lurdes e Maria Tereza, três irmãs que moravam numa pequena casa de madeira próxima à rua XV de Novembro, atrás havia linha férrea.
Além delas, Vitória e Vicente, netos do velho foieiro e Roberto Batista, o primeiro e único presidente que vi à frente da Cruzada. Nomes como Roberto Domingues, Afonso Pastro, Max Gehringer, o homem que aparece no Fantástico, Marly, Maria Ângela, a Zeni e a Oliveira faziam parte da Cruzada. A média era de 50 crianças. Dona Leonor era a organista e ajudava nos ensaios de cântico e também preparava as crianças para as peças de teatro que apresentávamos no salão paroquial que mais tarde virou o Cine Vila Arens. Me sentia deslocado trabalhar como "ator", interpretar personagens em peças como "Os tamancos do diabo" e "Viva o general". Ficava vermelho, sentia a voz sumir, mas não perdia a pose, principalmente quando interpretei Satanás e tive que fugir do crucifixo que padre Hugo me acenava da platéia. E era lá do palco que eu procurava, entre os presentes, dona Angelina e seu Alcindo. Com meus 12 anos, achava que estavam orgulhosos de me verem ali.
Acabei sendo o responsável pela entrada na Cruzada de praticamente todos meus irmãos. Com exceção de Ademir, que se tornou congregado mariano, todos foram membros da Cruzada: Ana Maria, Osmar, Antonio e Alberto.
O que não me deixa esquecer este tempo é padre Hugo. Austero, inteligente, cobrando das crianças responsabilidade. Lições inesquecíveis! Nos espelhávamos tanto nele que Antonio acabou seguindo seus passos e trabalha na Diocese de São Paulo, tendo, inclusive, participado do programa "Sagrado", na Rede Globo de Televisão.
Padre Hugo já partiu. Uma partida inesperada, sem tempo de despedidas, mas sua fisionomia, seu olhar, sua mão ajeitando os poucos fios de cabelo, seu sorriso e sempre aquela batina preta, mostrando que ali estava um sacerdote, não desaparecem de minha mente.
A infância, sem dúvida, é a melhor fase de nossas vidas. E sempre traz lembranças inesquecíveis. Mesmo sem existir uma máquina para nos transportar para aqueles tempos, conseguimos voltar até eles.
E o meu maior orgulho é ter convivido com tanta gente importante. E eram. E são! Até hoje. Todos! Muitos, nunca mais vi, outros ouço falar, mas o que faz estes olhos se encherem de água é a recordação de um tempo que resiste aos anos, às décadas e está sempre viva, sempre fresca em minha lembrança.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Tempo de inocência!

A porta do quarto se abre e dona Angelina me chama suavemente, como não querendo me acordar, mas tendo de fazer isso. O dia é 25 de outubro de 1959, um domingo, e são 6 horas da manhã. Acordar neste horário hoje é fundamental. É o dia de minha primeira comunhão.
Percebo a alegria estampada no rosto desta mulher, com seus lindos cabelos brancos. É o primeiro domingo em que ela não vai à missa das cinco e meia – e por minha causa! É o terceiro filho que ela vê receber Jesus no coração!
Me ajuda a colocar a roupa. A acertar o suspensório na calça curta do terno azul marinho, a arrumar a gravata borboleta, a abotoar o colarinho. O cabelo é um detalhe: o corte é topete (meia dúzia de fios de cabelo na cabeça) e já estou pronto!
Pronto, não! Falta arrumar as meias três-quartos e amarrar o sapato – e isso Dona Angelina faz rapidamente, lembrando que já estava na hora de eu aprender a dar o laço no cadarço dos sapatos.
Correria na rua, a caminho da igreja da Vila Arens, e lá vai a família toda para a missa das sete e meia. Café, antes de ir à missa, nem pensar: o jejum era de três horas antes da comunhão, o que significava que eu iria sentir fome na igreja.
E lá está padre Alberto no púlpito que, hoje, não existe mais. “Chegou a hora da querida festa, chegou a hora em que vamos comungar...” cantava ele, com seu português arranhado, já que era alemão. “Cantem todos”, dizia ele, obedecido imediatamente pelas mais de cem crianças que entravam na igreja para participar da missa.
A fila é formada na praça, em frente à escadaria da igreja. Os meninos, todos de terno azul marinho e camisa branca entram na frente, e as meninas – todas de branco com véu na cabeça – vêm logo atrás. Na hora de sair, ao contrário: primeiro saem as meninas e os meninos depois.
A entrada é triunfal! A gente consegue visualizar os parentes acenando no meio de uma multidão. E todos cantando, acompanhando o “maestro” padre Alberto: “Senhor Jesus, nós crianças vos amamos, com todo nosso pequeno coração...”
Já no banco, livro próprio da Primeira Comunhão na mão, terço no meio dele, acompanhando os cânticos e as explicações do padre. A missa, em latim, era difícil de ser acompanhada. O padre, de costas para os fiéis, só se voltava para dizer “Dominus vobiscum” e os coroinhas respondiam: “et cum spíritu tuuuuuooooo.”
Chega a hora de receber a hóstia consagrada! Em fila, nos aproximamos da mesa da comunhão. Dona Nair, minha catequista, com uma caixinha na mão, dá o sinal para um grupo se levantar e outro se ajoelhar. E o padre coloca a hóstia em minha boca. Cabeça baixa, concentrado, conversando com Jesus, volto para o banco.
O calor é forte! Duas ou três crianças passam mal, precisam ser socorridas, mas a missa termina, com o cântico final e todas as crianças saindo da igreja.
É hora da fotografia!
Na porta da igreja, recebemos o certificado das mãos da catequista e nos dirigimos ao fotógrafo, que fica bem em frente à igreja. Uma hora na fila e a foto tradicional: em pé, sorrindo, com o livreto na mão e o terço colocado no meio, ao lado de uma imagem de Jesus Cristo.
Já em casa, tomando café com leite e refeito do desgaste físico, lá vou eu jogar bola com os irmãos mas, na cabeça, a cena do dia não desaparece: a fila, as mãos postas, o corpo de Cristo entregue pelas mãos do padre e a igreja, lotada, cantando “chegou o dia da querida festa...”

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Ignorando a banda no coreto!

Dia, mês e ano não me lembro bem. Mas era década de 50, finalzinho dela. Isso tenho certeza! A outra certeza é que era domingo. A missa das 7h30 na Vila Arens tinha terminado naquele instante e eu desci as escadas da igreja com meu pai, rumo ao coreto da praça. O dia não estava tão quente, mas me lembro do meu terno azul-marinho de calça curta (naquele tempo criança usava calça curta!) e gravata borboleta.
O número de pessoas era grande, pois estava quase na hora da banda começar a tocar. Num segundo, me livrei das mãos grossas e calejadas de meu pai e me misturei entre as pessoas. Queria ver a banda mais de perto e os instrumentos me chamaram a atenção.
“Qual é o seu nome?” Quando ouvi a frase, me voltei para ver quem era e a vi se afastando, subindo a escada, como que indo embora. Respirei fundo, desabotoei o paletó e fui atrás. Era uma menina com a mesma idade que eu – imagino, nove anos – cabelos loiros, compridos em forma de trança, vestido branco, meia branca três-quartos, imagino que de Primeira Comunhão, como meu terno e um sapatinho preto nos pés.
Do alto da escada ela olhou para trás, para ver onde eu estava. Percebi seu sorriso, quando viu que eu a seguia. Lembro que, quando cheguei no alto da escada, ela fez a curva, para cruzar a frente da igreja, diante do local onde, mais tarde, seria construída uma gruta — e derrubada não faz muito tempo porque os engenheiros achavam que havia infiltração de água e que poderia prejudicar o prédio da Matriz.
Quando ela desapareceu de minha vista, acelerei o passo, comecei a correr. Quando fiz a curva, lá estava ela, no alto da escadaria, na porta da igreja, me olhando... Tomei fôlego, passei as costas da mão na boca e tentei subir a escadaria.
Tentei, mas naquele instante senti uma mão grossa e calejada segurar a minha. “Onde vai, menino?” perguntou ele. Quando olhei para a porta da igreja, a menina havia desaparecido. Sorri para meu pai e perguntei onde estava o pipoqueiro. “Perto do coreto”, respondeu. Voltamos e acompanhei o espetáculo até o fim. Não me lembro de uma música tocada. Não que a banda não fosse boa, pois meu pai dizia que era a melhor de Jundiaí, mas é que meus ouvidos, meu coração e meu ser estavam com a menina de vestido branco.
A banda tocava e meus olhos circulavam pelo local à procura dela. Quando tudo terminou e meu pai, mais uma vez, colocou sua mão calejada junto da minha, deixamos o local rumo à nossa casa.
Foi um domingo inesquecível, tanto que mais de 50 anos depois ainda tenho limpo e claro em minha mente. O detalhe mais importante deste dia foi que, ao me afastar do local e chegar perto de onde surgiria a gruta, olhei em direção ao coreto e lá estava ela: com seu vestido branco, cabelos lindos em forma de trança, me olhando, acenando, sorrindo para mim. Quis me livrar das mãos calejadas, mas elas eram mais fortes do que eu e não consegui. Quis chorar e não consegui, quis fugir e não tive forças. Desapareci na curva para os olhos dela! E os meus nunca mais a viram.