segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O quebra-nozes, o último ato

Almoço de Natal ou Ano Novo, em casa, no final da década de 50, começava na véspera, no início da tarde. Enquanto minha mãe misturava trigo e ovos, eu descia com meu pai até o açougue do Produtor, na Vila Arens, para comprar pernil. O local vivia lotado, com fregueses que vinham de todos os lados da cidade, mas com um atendimento muito rápido. “Um quilo de pernil aqui, quem vai querer?” gritava o homem do outro lado do balcão; “dois quilos aqui”, gritava outro e os fregueses erguiam as mãos e saíam com o produto, satisfeitos.
Em casa, minha mãe já terminara de preparar a massa da lazanha e, enquanto esta secava sobre a cama, o pernil era temperado para o almoço do outro dia. Com a mesa desocupada eu e meus irmãos jogávamos botão, vibrando com os gols, sempre de jogadores do Palmeiras.
E o dia seguinte chegava logo, até porque a gente dormia cedo para acordar mais cedo ainda e esperar o almoço. Se fosse dia de Natal, corríamos ao presépio para ver os brinquedos que sonhávamos ganhar. O triciclo que já fora de Ademir, de Ana e meu, estava agora pintadinho e pronto para virar presente do Osmar. Ademir ganhava raquete e bolinhas de ping-pong, Ana Maria, uma nova boneca e eu saía a montar um quebra-cabeça. E já era hora do almoço. Salada, lasanha, o pernil assado, mais um frango do quintal e duas garrafas de soda limonada Jun-Bra eram a refeição.
Barriga cheia, pratos vazios, copos do mesmo jeito, lá vinha meu pai com uma cesta cheia de frutas natalinas para serem saboreadas: castanhas, nozes e avelãs. Cesta colocada no meio da mesa, iniciávamos o último ato do almoço: o que chamávamos de “o quebra-nozes”. Mesmo que houvesse castanhas e avelãs. Nozes eram as frutas que davam mais trabalho para terem suas cascas quebradas e, portanto, tinham quebradores especiais: martelo de carne, batido com cuidado para não destruir as frutas; a própria garrafa de refrigerante, também com cuidado, agora para não quebrar a garrafa; o velho martelo que meu pai usava para pregar as tábuas do galinheiro e aquilo que mais irritava seu Alcindo: na falta de quebradores usávamos o batente da porta. Fruta colocada no cantinho e a porta era fechada para “apertar” e quebrar a mesma. A irritação tinha sentido: a porta ficava marcada!
Se a noz era quebrada com jeito, as duas metades eram usadas como “tartarugas” e colocadas no presépio. Se quebrada com muita força, levávamos muito tempo para tirar os pedacinhos da fruta do amontoado de cascas. Era comum ver uma avelã voando da mesa por causa de um descuidado que, na tentativa de quebrar sem acertar a mão, o fazia deixando a fruta solta: batida mal dada, fruta voando longe e gozação por parte dos outros.
Mas o que me deixava feliz era tentar esconder todos os quebradores. Fazíamos isso combinados: os martelos desapareciam, as garrafas ocupadas, obrigavam meu pai a pegar duas nozes na mão, apertar uma contra a outra e, na hora do “crac”, olhávamos para ver seu Alcindo retirando a fruta quebrada do meio da mão e colocando a mesma na mesa. Só para ver seus filhos dividindo os pedaços.
Mas no Ano Novo tinha sempre um ato a mais: depois do almoço já ia a família para a casa do vô José, na rua Marrocos, no Jardim Bonfiglioli, para “pedir Boas Festas” e, no final do dia, conferir quem havia ganho mais.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Vitrines


 Você já passou diante de uma vitrine e sonhou com o que seus olhos viam? Quer um vestido, uma blusa, uma calça, uma camisa? Com certeza já... E no meu tempo de garoto, o que mais gostava era de passar diante de uma vitrine para ver se tinha algo, ali, que me pudesse fazer sonhar. Loja de brinquedo, claro, era meu sonho. E nas noites de dezembro, quando o comércio ficava aberto até mais tarde – e dinda fica -, lá ia eu e meus irmãos passear pelas ruas da cidade. Ônibus lotado de pessoas, empurra-empurra na hora de subir e descer, mas... depois... um alívio interior que não dá para se medir. Apenas sentir!!!
E lá iam meus irmãos para as vitrines de lojas de roupas. Jundiaí tinha apenas uma grande loja de roupas por volta dos anos 60. “Rei das roupas feitas” vivia cheio de gente e, no Natal, todo mundo saia vestido igual... Mas eu não via a hora de sair dali, depois de experimentar uma, duas camisas, não gostar de nenhuma, mas achar que eram ideais para meu uso diário – uma – e missa dominical – a outra.
Mas criança mesmo quer mais é passar diante da vitrine daquela loja, ver aquele brinquedo sonhado. E pronto! Roupa comprada, o caminho era as vitrines de brinquedos, mesmo sabendo que não compraria nada daquilo, meus olhos brilhavam ao imaginar o que poderia estar na vitrine do meu sonho...
E estacionava diante das vitrines. Bicicletas, triciclos, bolas de capotão, de borracha, caminhãozinho de madeira, jogo de tômbola, de varetas, dominó, quebra-cabeça de madeira... Um sonho, um doce e interminável sonho!
Enquanto meus irmãos olhavam brinquedos “para maiores”, me deliciava com meus sonhos de criança... Descendo a avenida com o triciclo, enquanto meu irmão olhava dos dois lados da rua para ver se não aparecia nenhum veículo mais “maluco” do que eu. E a bola rolava o campo... mesmo que fosse um rapadão. O ideal era jogar, chutar, marcar, comemorar. E, depois, correr no açougue, pedir um pedaço de sebo e deixar a bola de capotão “oficial” brilhando...
E lá vem o caminhãozinho carregado de pedras para se construir uma linda casa... E pronto! O sonho terminou. Meus irmãos já tinham verificado o que queriam ganhar e pedir para nosso pai colocar debaixo do presépio na noite de Natal. “E você, o que quer?”, perguntava Ademir. Eu, me afastando da vitrine, olhava pra trás, imaginava os sonhos, respirava fundo e seguia em busca do ônibus “não sei, não tenho idéia de preço, não sei o que papai pode comprar pra mim...”

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Mulher!

Outro dia ouvi dizer que todo mundo tem uma história de amor. E história de amor é sempre cheia de emoção, de paixão, de momentos inesquecíveis. E, claro, nem toda história de amor te início, meio e fim. História de amor é quase sempre eterna. Não “eterna enquanto dure”, mas eterna “para sempre”. Mas se existe história com princípio, meio e fim, também é história de amor. Afinal, amor é amor. E cada um sabe a intensidade dele...
E imagino que, quem não teve sua história de amor, pulou este capítulo da vida. Ou tentou ignorá-lo.
A minha história de amor pode ser considerada, para muitos, comum, mas considero eterna “para sempre”. Ela começou na década de 70, exatamente na metade dela. E na capa desta história, como se fosse um livro – é, um livro, porque, na verdade, um capítulo é muito pouco – tem a foto dela: da personagem principal que selou, em definitivo estas páginas de uma história sem fim. Nesta foto ela aparece meiga, doce, terna. Se é possível dizer suave, ela aparece suave; se é possível dizer leve, ela aparece leve. Como uma pluma! Diria que o marcante nela, que se tornou minha mulher e me transformou em coadjuvante desta história de amor, é sua personalidade: decidida, forte. E se sou coadjuvante, ela só pode ser principal, pois é única! Por isso ela aparece em primeiro, por isso ela é capa deste livro. Por isso ela é principal. E eu apenas um coadjuvante...
Essa história de que elas são sexo frágil, só pode ser coisa de quem não conhece esta mulher forte, decidida, resoluta. Sabe o que quer, sabe o que faz! E foi sempre assim nestes anos todos de convivência, iniciados com um namoro, depois de um ano de paquera e consolidados com o casamento há exatos 32 anos.
Uma convivência que tem muitos momentos maravilhosos e outras situações atribuladas, difíceis, principalmente quando o dinheiro desaparecia dos bolsos. Mas sempre aparecia ela para transformar tudo num momento de paz e tranqüilidade. Uma convivência cheia de união, de paz, de amor, de entendimento em apenas um olhar! E um sorriso constante, brilhando em seus lábios, iluminando seu rosto...
E é deste olhar meigo e singelo que me lembro do primeiro dia em que a vi e a transformei em capa deste livro que contém nossa história de amor. Um olhar de menina-moça que virou mulher...
Um olhar que conquistou meu coração.
O coração não!!! Todo meu ser!
Me envolveu, me dominou.
É interessante perceber como ela transforma uma rotina em novidade.
Dinâmica, criativa, viva. Ah mulher das emoções, das paixões, dos corações!!!
Relembrar dia a dia estes anos todos, folheando este livro, seria difícil e exagerado, mas diria que toda manhã, quando o sol nasce lá fora ou mesmo quando os pingos da chuva batem suavemente na janela do quarto, sinto um, dez, vinte, não sei quantos, perco a conta, de tantos beijos de amor que recebo dela. E é isso que transforma a rotina, é isso que dá ânimo à vida! Uma vida bela, doce, rica!
E na chegada do filho, a transformação, a redobrada de atenção, de emoção, de carinhos. A mulher-esposa, a mulher-mãe. Super esposa, super-mãe!Bela, doce, rica!
E não me canso de olhar seus olhos, seu sorriso, seu jeito singelo, sincero e, claro, não me canso de agradecer a Deus que a colocou no meu caminho.
Dinâmica, criativa, viva!!! Bela, doce, rica!
É assim esta mulher: esposa, mãe, enfermeira, psicóloga, médica, motorista, cozinheira, professora.
Ah! Esse brilho nos olhos... esse jeito doce de agir, de falar, de amar. Dinâmica, criativa, viva!!! Bela, doce, rica! Rita!
E, como muita história de amor, esta é real. E, como muita história de amor, esta não tem fim. E, como muita história de amor, esta é inesquecível.
Uma história bela, doce, Rita! Rita de Cássia. (homenagem aos 32 anos de casados - Eu e Rita de Cássia - que são comemorados neste dia 20 de dezembro)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Alegrias de um novo Natal!

Quando o relógio bateu meia-noite, peguei meu pequeno Tiago nos braços e o levei até a sala. Era seu primeiro Natal com a gente e tinha apenas nove meses de existência. Uma enorme caixa – para o pequeno tamanho dele – o assustou. Mas percebemos, eu e Rita de Cássia – que o susto era de alegria. O sorriso nos lábios e os braços abertos querendo “pular” para o chão e abrir o pacote eram sinais claros de sua felicidade. Pedaços de papel rasgado voaram por todos os lados e ficamos, eu e minha amada, apreciando a alegria deste pequeno ser humano.
A cada pedaço de papel rasgado e jogado longe, ele nos olhava como que interrogando-nos se o que fazia era correto ou não. A alegria em nossos rostos mostrava claramente que deveria continuar o que estava fazendo. Depois de meia dúzia de rasga-rasga, Tiago já percebera o triciclo que aparecia, como num passe de mágica à sua frente. Mágica porque o pacote deixava de existir e era substituído por um brinquedo novo, uma alegria que Tiago sentia e que transferia também para nós. E era uma alegria de todos: dele, pelo presente ganho e de nós, pelo presente que recebemos de Deus nove meses antes.
Papel rasgado, triciclo livre e lá vai Tiago usar pela primeira vez seu brinquedo. A sala seria pequena para suas “pedaladas” que, na verdade, não eram pés no pedal, mas pés no chão e o movimento não era para frente, era para trás. Sem noção exata de para onde ir, o triciclo seguia as orientações do “piloto”. E o “piloto”, com os pés, seguia para trás. As explicações foram rápidas, com a colocação dos pés no pedal e o movimento para frente. A alegria em seu rosto era tanta que sentimos, eu e Rita de Cássia, nossos olhos se umedecerem de felicidade. Sorrimos um para o outro, nos demos as mãos e oramos a Deus a graça recebida. A graça de ter conosco um pequeno anjo de Deus, transformado em ser humano e que modificou para sempre nossas vidas.
As pedaladas e o horário acabaram cansando o pequeno Tiago que foi dominado pelo sono e dormiu nos braços da mãe. Mas a brincadeira seria retomada quando o sol surgia forte e quente do outro lado do mundo. E não percebemos o tempo passar naquele Natal, só acompanhando a alegria do filho.
Já perceberam como um filho transforma a vida das pessoas? Todas as ações são feitas exatamente se pensando nesta nova pessoa: ações que visam, sempre, sua alegria. E a alegria do filho é, também, a felicidade dos pais.
E a alegria deste primeiro Natal em três é revivida a cada ano, sempre se lembrando de agradecer a Deus o complemento maior de uma família. E filho é sempre uma benção de Deus.
Obrigado, meu Deus, por me fazer pai; obrigado, meu Deus, por transformar Rita de Cássia em mãe; obrigado, meu Deus, pela alegria de Tiago ser nosso filho.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Presente do coração

O comércio estava fechando mais cedo naquele dia, por ser véspera de Natal. E ele sabia que tinha que acelerar os passos para chegar em casa, pois pretendia levar toda a família na Igreja para participar da Missa do Galo e queria descansar um pouco, pois o movimento nas lojas tinha sido muito grande e se vestir de Papai Noel, com o calor que faz no Brasil, realmente é uma loucura!
Por executar este tipo de serviço pela primeira vez, não podia avaliar se fora ou não melhor que os outros anos. Sabia apenas que tinha se desgastado demais para ganhar o pequeno salário que recebera. Não podia, na verdade, reclamar, pois estivera trabalhando. Apenas o preocupava a semana seguinte, pois estaria, novamente, desempregado. A experiência, para ele, fora interessante. Conversara com muitas pessoas no período em que trabalhara como Papai Noel. Ouviu muitas histórias curiosas, principalmente as contadas por crianças. Lembrou-se vagamente de uma menina que lhe dissera ter um problema de pulmão, sentir dificuldade para respirar. Lembrou-se também que a mesma menina, que lhe dissera chamar-se Juliana, que não estava na fila do Papai Noel para pedir presente. Isso ela tinha bastante... Estava na fila, mesmo, era para conversar com outras crianças – e fizera isso durante a espera – e queria, também, ouvir uma palavra amiga daquele homem barbudo e simpático.
Foi assim que ela o chamou, quando sentou-se em seu colo. Disse que tinha uma infância com poucas amizades, por ser filha única, e queria sempre ouvir uma palavra de apoio, pois a dor que sentia lhe provocava lágrimas a todo momento. E Papai Noel ou o homem barbudo e simpático, lhe disse simplesmente que a alegria de viver deveria ser maior que a dor que sentia. Que o importante era conter as lágrimas da dor, que elas deveriam ser substituídas pelas lágrimas da felicidade. E que não poderia haver alegria maior do que ter uma família.
Juliana olhou nos olhos daquele barbudo e simpático, sorriu suavemente, limpou os olhos que queriam lacrimejar novamente, e lhe perguntou como era sua família. Ele coçou a barba postiça, sorriu para a menina, e lhe disse que estava fazendo aquele trabalho, simplesmente por estar desempregado há seis meses e tinha, em casa, quatro bocas de crianças para sustentar. E que o trabalho de faxina da mulher não era suficiente para todos se alimentarem. O gordo e simpático disse que, dependendo do dia, ele ou a esposa não se alimentavam... Naquele dezembro, houve um pouco mais de alegria. Ninguém ficara, em casa, sem comer.
A menina levantou-se de seu colo, beijou a bochecha vermelha do homem simpático, fez um carinho em sua barba e, antes de dizer adeus, lhe fez uma promessa: “Papai Noel, meu pai vai lhe dar um emprego de presente ainda este ano!” E saiu correndo pela loja, desaparecendo na porta.
O homem, agora retornando para casa, não soube porque pensara naquela menina àquela hora. Sabia apenas que não podia perder o ônibus, para a família não ficar sem jantar e a missa não se perder. Nem bem entrou no coletivo e a porta se fechou em suas costas, pois não cabia mais ninguém ali. Desceu rapidamente perto de casa, chegou com algumas sacolas do supermercado e viu alegria no rosto de toda sua família. Beijou um a um os quatro filhos, abraçou e beijou a esposa e, depois do banho e do jantar, reuniu todo mundo para o caminho da igreja.
Teve sorte este ano, pois chegou e nem todos os bancos estavam lotados ainda. Sentou-se com toda sua família e aguardou a celebração. Sentiu um calafrio no corpo, quando o padre sugeriu, ao final da missa, que as pessoas procurassem alguém especial dentro da igreja para desejar Feliz Natal. Depois que abraçou e beijou e chorou junto com sua família, virou-se para ver se visualizava alguém especial. Conhecia muita gente da igreja, mas não tinha em mente, alguém diferente, alguém especial. Quando tirou as costas da mão dos olhos, que enxugaram as lágrimas, soluçou mais forte: diante de seus olhos, com um envelope na mão, e um largo sorriso nos lábios, estava Juliana, aquela menina dos tempos de Papai Noel.
Juliana lhe entregou o envelope, beijou-o no rosto e disse que, ali, estava o emprego que precisava. O homem perguntou como o reconhecera, já que uma almofada fizera o preenchimento da “gordura” em sua barriga e a barba branca e postiça já não estava mais em seu rosto. A menina olhou nos olhos daquele homem e respondeu simplesmente “te reconheci pelo seu coração!”

(5° lugar no III Concurso Histórias de Natal do Movimento Vida Cristã, em 2005)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Natal é família unida

Estava cansado demais aquele dia para continuar a trabalhar. A noite já ia longe, sabia disso, mesmo sem ter relógio, pois a estrela Dalva já estava presente, como que anunciando uma nova manhã. Precisava descansar, dormir, pois o novo dia lhe traria mais trabalho e novas agonias, já que era véspera de Natal. Estava afastado da família já fazia anos, pois tentava ganhar um dinheiro extra para reunir-se novamente com todos. Tentara isso muitas vezes, mas as crises na economia do país acabavam chegando sempre na hora de tentar resolver seu problema. Chorava sempre de saudade dos filhos, da esposa que não via já não tinha mais noção de quanto tempo. Imaginava que os filhos já estivessem grandes, pois percebia seus cabelos cada vez mais brancos e o corpo mais e mais cansado.
Escrevia sempre para eles, recebia fotos, mas nada como o contato direto pele-a-pele. Sonhava com a família novamente unida. Não sabia quando isso ia acontecer, mas imaginava que não poderia demorar, pois a vida é tão curta e não vale tanto a pena a distância, a saudade, a tristeza, a dor de uma ausência.
Já tinha na mente que seria a última vez que isso aconteceria. Que, mesmo sem ter dinheiro suficiente, retornaria ao convívio da família ou traria todos para junto de si. A distância tinha que terminar...
Depois de algumas horas de sono retornou ao trabalho. O sol, como sempre, batia forte em seu corpo, aumentando ainda mais o cansaço. Mas a disposição era muita, a decisão de mudar de vida lhe dava mais ânimo de ir em frente. Sabia que não teria muito tempo de recolher material reciclável, de vender, arrecadar dinheiro e trazer sua família de volta. O movimento na cidade crescia cada vez mais, as buzinas de carro, a alegria nos olhos das pessoas, lhe davam ânimo maior. Fechou seu dia de trabalho mais cedo, apesar do propósito de conquistar mais dinheiro para o futuro. E correu para telefonar para a família. A saudade era muito grande e queria, mesmo que mais cedo, desejar a todos um feliz Natal e garantir que este seria o último que estaria separado de todos.
Quando a vizinha atendeu o telefone e avisou que seus parentes não estavam, o desânimo bateu forte em seu coração. Quis chorar, mas sentiu que não tinha lágrimas naquele instante. Teve vontade de gritar, mas a voz saiu rouca e sem força. Quis correr para casa, mas sentiu as pernas enfraquecerem. Sentiu um suor frio escorrer pelo rosto e a vista embaralhar e teve medo. Imaginou que nem viveria o Natal que estava tão próximo. Sentou-se no banco da praça para refazer as forças e acabou caindo no sono. Quando acordou a noite já estava presente, mas não pensou em lágrimas, em gritos e muito menos em corrida. Queria apenas chegar em casa e comer alguma coisa para se recuperar do desgaste daquele dia.
Caminhou alguns passos, encontrou um outro orelhão e fez nova ligação, a cobrar, para a vizinha. A resposta foi a mesma da outra vez: ninguém em casa! Resolveu deixar a ligação para o dia seguinte, para a manhã de Natal, antes do almoço... Seria um bom horário para cumprimentar a todos, para ouvir vozes saudosas, para chorar junto com todos.
Na curva da esquina, lá embaixo, do outro lado dos barracos, onde costumava parar para olhar o local onde morava, sentiu as pernas tremerem. Havia luz em seu barraco e imaginou que tivesse saído cedo e esquecido de apagá-la. Pensou numa conta maior naquele mês e uma dificuldade muito grande de viajar depois. Quis correr, mas se sentiu frágil para isso. Sentiu as pernas tremerem. Não sabia se de medo ou de que?
Dois passos antes da porta percebeu que ela se abrir lentamente. O medo aumentou, pois imaginou um ladrão, mas sorriu ao pensar que este não passaria por um barraco vazio. Deu um passo à frente, esticou o braço e empurrou devagar a porta, para ver, lenta e suavemente... sua mulher e seus três filhos, já crescidos, ao redor de uma mesa, esperando por ele.
O batimento do coração acelerou, a voz se misturou com um soluço em lágrimas e seus braços voaram para os corpos pequenos e franzinos das pessoas que ele tanto amava. Não interessava saber como a família conseguira dinheiro para estar ali com ele. E soube que todos trabalharam forte aquele ano para conseguir mais dinheiro e todos passarem o Natal juntos. Lamentou sua falta de sorte em não ter conseguido ganhar o suficiente, mas percebeu que o dinheiro de todos serviu para unir a família de novo. E chorou com todos, lágrimas de uma promessa de nunca mais separar as pessoas que mais se amam.
E para que a separação se esta vida voa como o pássaro em busca de outro lugar para repousar? E a família comemorou o primeiro de muitos natais juntos. Natal de felicidade. Natal de nascimento de esperança de uma vida melhor. Juntos, e com Deus no coração!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Um doce presente!


Quando ergui o pano que circundava a mesa, sobre a qual estava montado o presépio, tive minha primeira frustração na vida: não havia presente ali, conforme tinha ouvido dizer um dia: os brinquedos ficam debaixo do presépio e a hora que acordar é só ir buscar... A vontade de chorar foi grande, me lembro até hoje, mesmo que este fato tenha acontecido há mais de 50 anos.
Ouvi meus pais conversando na cozinha, enquanto preparavam o almoço de Natal e procurei meus irmãos mais velhos para ver do que brincavam: eles também conversavam. Apenas Osmar, com pouco mais de um ano, brincava com um caminhãozinho, carregando e descarregando terra no quintal.
Me contive, mais uma vez, para segurar duas lágrimas que tentavam fugir dos meus olhos. Pensei em perguntar para os meus irmãos se a gente era muito pobre e não tinha presente. Se o que meu pai ganhava não dava para comprar brinquedos para a gente. Mas achei que esta não era uma pergunta boa para ser feita. Olhava pelo muro, lá na rua, crianças brincando com bicicleta, com triciclo, com boneca, com carrinho e pensei em ir fazer companhia a elas, mas achei que não era o certo deixar meus outros irmãos em casa, mesmo que fossem mais velhos do que eu, sem terem brinquedos para se divertir.
Percebi, mais uma vez, as lágrimas tentando fugir e tomei uma decisão: espiar de novo debaixo do presépio. Corri até lá, imaginei que tinha presente sim e levantei, mais uma vez, o pano. Nada!
Olhei para o pequeno menino Jesus no presépio e imaginei que ele talvez nunca tivesse tido um brinquedo ou nem tivesse tempo para brincar e me controlei. Mas não sei se vocês percebem, tem muitas vezes que não conseguimos controlar nossas emoções. Pois é, aquelas duas lágrimas escaparam dos olhos e percebi que atrás delas vinham mais...
Passei correndo pela cozinha para que meus pais não percebessem o que estava acontecendo comigo, quase trombei com Osmar que já estava cansado de brincar e vinha guardar o caminhãozinho e fui até o fundo do quintal. As lágrimas desciam em fila, parecia até que vinham de mãos dadas, tão próximas estavam umas das outras. Respirava fundo para segurar o choro, mas não conseguia. Olhei os galhos da goiabeira, passei debaixo da ameixeira, pensei em colher uma manga, mas achei que não devia.
As lágrimas se acabaram e comecei a sentir que estava voltando ao normal. Cantarolei alguma musiquinha para esquecer a frustração e fui para casa, imaginando que meus olhos não estavam mais vermelhos.
Quando chegava perto da porta da cozinha, minha mãe pediu para me sentar à mesa, pois o almoço de Natal seria servido. Vieram Ademir e Ana Maria, meus irmãos mais velhos, e nos sentamos para almoçar. Quando todos já estavam à mesa, meu pai se levantou e foi até seu quarto e voltou com duas caixas. Entregou uma a Ademir e outra para Ana Maria e disse que eram presentes de Natal. Os dois abriram rapidamente: Ademir ganhara um jogo de ludo, Ana Maria uma boneca nova. Nos meus cinco anos senti, mais uma vez, vontade de chorar. Virei o prato, disfarçadamente para esperar a comida, quando meu pai disse para eu até meu quarto, que meu presente estava lá.
Derrubei a cadeira na hora de deixar a mesa, quase pisei no caminhãozinho que Osmar deixara ao lado de seu cadeirão, e corri, corri, corri e não me contive: chorei, chorei e chorei! Ao lado de minha cama estava o triciclo de meus sonhos... Bati o joelho nos pés da cama, mas nem sentir a dor. Montei e já saí pedalando. Na mesa, meus irmãos e meus pais cantavam “Noite Feliz”, que virou tradição na família sempre antes da refeição de Natal. Parei ao lado da mesa para tentar cantar junto, mas como não sabia a letra, saí pedalando. Não me importava se aquele triciclo tinha sido de Ademir e já passado pelas mãos de Ana Maria. O que interessava é que agora era meu, mesmo que dali a dois anos, fosse dado de presente ao Osmar. O importante era aquele momento. Um presente só meu! A realização de um sonho. Mesmo que tivesse sido com tanto sofrimento, com uma frustração inicial que se transformou no meu primeiro Natal inesquecível.
Mesmo que fosse um presente que já passara por outras mãos. Mas sabia que meu pai havia pintado inteirinho, para mostrar que era novo. E presente é sempre presente! Principalmente para quem nunca tinha ganho um. E me lembro que, depois de várias voltas pelo quintal, voltei para almoçar. Mas antes de levar broncas, me atirei nos braços de meus pais que estavam sentados próximos na mesa. E não teve jeito: as lágrimas se deram as mãos e fugiram de meus olhos novamente.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Jesus nasce no coração de todos!

Os bancos da igreja começaram a ficar lotados de fiéis, mesmo faltando uma hora para o início da Missa do Galo. As pessoas chegavam sorridentes, se cumprimentando, desejando Feliz Natal. As crianças corriam pelos corredores, trombando com os mais idosos ou procurando o presépio montado no fundo da Igreja. O vigário estava na porta da matriz, esperando a chegada dos fiéis. Às vezes, uma criança menos tímida pulava no colo do sacerdote, perguntando por que o menino-Jesus não estava no presépio. “Ele só nasce à meia-noite”, respondia sorridente o padre.
Quando faltavam 20 minutos para o início da cerimônia, com a igreja já completamente lotada, um fato estranho aconteceu. O padre, ainda na porta da Igreja, visualizou uma mulher subindo os degraus com uma criança no colo. Até aí, a cena poderia ser considerada comum, não fosse o que aconteceu depois.
A mulher aproximou-se do sacerdote e, depois de desejar Feliz Natal, queria entregar o bebê ao padre. “Não tenho como criar ele”, dizia nervosa a mulher. “Não posso assumir isso”, dizia o padre, alegando que, no dia seguinte, ela poderia mudar de ideia e querer a criança de volta. “Já tenho cinco, não dá para criar mais este com meu marido desempregado”.
O padre coçou a barba, ajeitou os óculos sobre o nariz e resolveu assumir a criança, com uma condição: que a mulher participasse da missa até o final!
Compromisso assumido, o padre vai para a sacristia vestir os paramentos para iniciar a cerimônia. A criança ficara na sacristia aos cuidados de uma paroquiana, enquanto a mãe-desistente ajeitava-se no último banco.
Durante a homilia, o padre falou da importância do Natal, lembrando que o menino-Deus não tinha onde nascer e acabou vindo ao mundo, numa pequena manjedoura. Lembrou da importância de ser mãe, contou a história de Maria e sua disponibilidade em aceitar ser a mãe de Deus, mesmo não conhecendo homem algum. Depois da comunhão, o padre fez os fiéis se sentarem, dizendo que, finalmente, o menino-Jesus, seria colocado no presépio. As luzes da Igreja se apagaram, as crianças se ajeitaram nos bancos e os mais idosos ameaçaram derramar algumas lágrimas, pois a cena seria igual a de todos os anos: uma criança entrava na Igreja com a imagem do menino-Jesus e a colocaria no presépio.
Mas desta vez o fato foi diferente e fez com que todos se levantassem em pé, quando o próprio padre deixou o altar e reapareceu, um minuto depois, na porta dos fundos da Igreja, com um bebê no colo. Um holofote foi acesso exatamente onde o padre estava e todos viram um vulto se mexendo em seus braços. Apenas uma toalha envolvia a criança.
O sacerdote caminhou alguns passos em direção ao presépio. Todo mundo queria ver o bebê que se mexia em seus braços, mas não chorava. As pessoas percebiam um homem trêmulo, emocionado, levando o bebê. Com jeito, ele esticou os braços e colocou o recém-nascido no local onde deveria estar o menino-Jesus. Ouviram-se alguns soluços pela igreja. O padre afastou-se e voltou para o altar. Dali, ele deu a mensagem final. A mensagem de encerramento da missa: “meus filhos: hoje nasce aqui, o menino-Deus. Aquele que vai salvar a humanidade. Mas, como há dois mil anos, ele foi rejeitado pelo mundo, pelas pessoas, por todos...”
No último banco da igreja, um choro forte se ouviu. As pessoas se voltaram para trás e viram a mulher correr em direção ao presépio e apanhar seu filho. Soluçando se dirigiu ao padre, se desculpou pelo que dissera e garantiu que criaria seu filho como um homem digno. O padre relatou a todos o que acontecera antes da missa começar e, como num milagre de Deus, todos os fiéis se dispuseram a ajudar a criar o bebê.
E mesmo que o final tenha sido diferente daquele vivido pelo pequeno Jesus, as pessoas se abraçaram, desejando um Natal mais santo, mais vivo, mais cheio de amor. Principalmente porque todos viram a chegada do pequeno Jesus, porque “tudo que fizerdes ao mais pequenino dos seres, a mim o fazeis!” E todas as mães presentes à missa se sentiram um pouco Maria e os pais um pouco José...
(2° lugar no I Concurso Histórias de Natal, do Movimento Vida Cristã, em 2003)


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Bolacha Maria ou "o corpo de Cristo"

Pequeno, não mais do que quatro anos de idade e, não sei porque, sério! Apesar de criança, muito criança, já tinha ideia do que ia ser no futuro. E era no seu tempo de criança que, ao invés de brincar como outros de sua idade, preferia reunir os irmãos mais velhos para fazer algo que gostava muito: rezar a missa!
Reunia dentro do quarto eu, Ana Maria e Osmar, já que Ademir trabalhava e Bertinho ainda não tinha nascido, e lá ia Toninho, com um lençol branco enrolado no corpo e amarrado na cintura com a ajuda de nossa mãe, fazer sua "celebração". Compenetrado, entrava para celebrar, segurando nas mãos um copo com água e groselha, para representar o vinho e, em cima de um pires, que substituía a patena, uma bolacha Maria que, mais tarde, se "transformaria" no Corpo de Cristo. A "missa" começava com as orações do folheto que ele "fazia de conta" que lia e nós respondíamos o "e contigo também" ou "Glória a vós, Senhor", sempre que o "padre" solicitava. A homilia era rápida, cinco palavras, no máximo. Nos esforçávamos para não rir, pois Toninho mantinha seu ar sério!
Na hora da "Consagração" fazia a gente ajoelhar, erguia a bolacha que mais se parecia com a hóstia que o padre mostrava na missa, fazia as orações em voz baixa e pronto: agora mostrava o "corpo de Cristo". A inocência de nossos corações nos permitia, em seguida, comer um pedaço da bolacha, torradinha, e bebericar um gole da água com groselha que, agora, se transformara “em sangue de Cristo”.
Quebrava a bolacha, mostrava para nós e dizia "o corpo de Cristo"; com seriedade, respondíamos "amém!"
Claro que esta inocência acabaria virando, hoje, motivo de riso, mas vivo olhando aqueles olhos serenos, aquela barba agora branca, que ele permitiu que o tempo assim a deixasse, e percebo como Deus faz as coisas tão certas. É que tinha que ser ele, com sua voz pausada, a celebrar, mais tarde, a Missa de Ação de Graças pelos 40 anos de casamento de dona Angelina e seu Alcindo. E a cerimônia ocorreu na igreja de Vila Arens. Igreja onde ele foi batizado, fez a Primeira Comunhão, foi crismado e acompanhou, passo a passo, os caminhos do padre Hugo.
As ações que realizamos em nossa infância, nem sempre resistem ao tempo: desaparecem da mente, se perdem nas atividades do dia-a-dia, se esquecem no trabalho ou em qualquer outro ato de nossas vidas. Mas para Toninho isso nunca desapareceu: criou dentro de si uma necessidade de transformar sua brincadeira de infância preferida em realidade, e transformar o meigo e doce olhar de dona Angelina, numa alegria sem tamanho quando da celebração de sua primeira missa, num novembro que já vai há 29 anos, completados nesta data.
Foi acompanhando os passos de seus irmãos mais velhos que entrou na "Cruzada Eucarística Infantil", na Vila Arens, e foi se apaixonando pelo Cristo, pelas pessoas, pela vida. E, sendo uma espécie de sombra de Padre Hugo, decidiu dedicar sua vida a Deus.
Não era apenas um dia por mês que seu trabalho aparecia. Toda primeira sexta-feira do mês saía de casa por volta das 6 horas da manhã e só voltava na hora do almoço. E isso tinha sentido: é que este dia era dedicado ao Sagrado Coração de Jesus e padre Hugo levava a comunhão para um número muito grande de doentes. Chegava esfomeado, morrendo de sede, mas sempre feliz.
Porém aos domingos é que a dedicação também era grande: depois da missa das crianças, que começava às 7h30, e da reunião da "Cruzadinha" que ia até 9h30, Toninho fazia questão de ver o que padre Hugo tinha programado para aquele dia. Às vezes, Toninho chegava para almoçar, depois do meio-dia, mas nunca seu Alcindo bronqueou, apesar de gostar de ver todos na mesa, para almoçar, no horário de costume!
E foi com esta dedicação que, numa tarde, chegou em casa acompanhado pelo dono da oficina mecânica onde trabalhava, aos 16 anos, para dizer que aquela não era a vida que queria. Que não se sentia bem trabalhando atrás de uma escrivaninha, sentindo o cheiro da graxa. Mas que aquela bolacha Maria representava para ele muito mais do que um trabalho que renderia dinheiro e sustento para sua família.
E hoje, quando o vejo no altar, com aquelas roupas todas, coçando a barba desarrumada, é que procuro lá no alto, num cantinho do céu, os olhos azuis de dona Angelina brilhando de alegria e seus lábios doces "soprando" frases que ele transmite aos fiéis...
(homenagem aos 29 anos de ordenação sacerdotal de Antonio Manzatto, meu irmão, comemorado neste dia 19 de novembro)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Conto de uma noite de Natal

A mesa estava pronta para a ceia desde as 21 horas. O chefe da cozinha transpirava com o calor e a preocupação de deixar tudo em ordem para a família não ter problemas com as visitas. Para agradecer o ano de trabalho, o empresário resolveu convidar os gerente e seus familiares para passarem a noite de Natal em sua casa, numa ceia que teria frutos do mar, vinho e champanhe franceses. As massas já estavam prontas, peru, leitão e carneiro estavam no forno, apenas para manterem-se aquecidos para as 23 horas, horário em que a refeição deveria ser posta à mesa. O movimento de empregados era grande por toda a casa. A árvore de Natal estava enfeitada e os piscas funcionando normalmente, para dar mais brilho àquela noite.
As visitas deveriam chegar por volta das 22 horas, quando os aperitivos deveriam começar a ser servidos. Empresário e esposa estavam na suíte se preparando para o acontecimento. Depois de um ano de muito trabalho e muito dinheiro, era importante agradecer aos gerentes que tão bem comandaram a empresa. Eram quase 22 horas, quando a mulher percebeu que os dois filhos, um com 19 e outro com 18 anos não estavam em casa e não tinham dado sinal de vida. Os celulares desligados impediam que ela os encontrasse e começava a ficar amargurada ao imaginar que eles não estariam em casa no horário combinado para agradar aos chefes da empresa.
O movimento nas ruas, àquela hora, era de pessoas seguindo para casa de parentes para a ceia ou de outras que se diriam ou voltavam das igrejas. O comércio já fechara as portas, bares e restaurantes e cinema seguiam a mesma linha de raciocínio, simplesmente para permitir que todos passassem a noite com seus familiares. Afinal, era noite de Natal!!!
Na casa, o movimento começou a crescer, campainha tocando, carros estacionando em frente à mansão e o casal anfitrião recepcionando os convidados. Na sala, o uisque já rodava solto com canapés; mulheres preferiam uma champanhe mais doce. Os filhos dos gerentes foram convidados a visitar a sala de jogos onde computadores e televisores com games estavam preparados para serem utilizados. O empresário mostrava-se feliz com a recepção que proporcionava aos homens e mulheres de confiança que o deixaram, aquele ano, muitos dólares mais rico. Sua esposa, porém, insistia em ligar nos celulares dos filhos que os mantinham desligados. Não eram filhos revoltados, não tinham motivo para isso, pois sempre tiveram tudo que quiseram. Poderia, talvez, faltar um pouco de atenção por parte dos pais, mas os garotos sempre demonstraram que entendiam a situação. Tudo bem que, uma semana antes do Natal, ficaram sabendo da ceia com o primeiro escalão da empresa e questionaram se poderiam levar alguns amigos também para compartilharem este momento. Claro que o velho empresário negou, terminantemente, que isso acontecesse. Afinal, o encontro era especial para as pessoas que fizeram a empresa deslanchar naquele ano.
A esposa percebera os olhares tristes dos garotos, mas teve a impressão de que tinham acatado a decisão. Não se falou mais no assunto até o meio-dia daquele 24 de dezembro, quando o pai lembrou os rapazes de que, às 22 horas, os convidados começariam a chegar e era importante que os dois também estivessem em casa. Poderiam trazer as namoradas e seus pais. Apenas! Já que a comida seria oferecida, de forma especial, aos homens fortes da empresa. Os dois rapazes desapareceram por volta das 18 horas, afirmando que iriam à missa de Natal e retornariam antes da ceia ser servida.
Na sala, o movimento das sete famílias convidadas transformava aquele ambiente sempre calmo, numa verdadeira festa. O aparelho de CD, com um volume não muito alto, para não atrapalhar a conversa, tocava melodias suaves. E já se aproximava das 23 horas e os garotos não chegavam. A mulher se desesperava, enquanto o empresário ia e voltava da cozinha para acompanhar o trabalho dos empregados no atendimento às visitas. Seu olhar de satisfação se contrapunha ao amargurado da esposa. Mas ele nem percebera isso...
O casal anfitrião, finalmente, por volta das 23 horas, convidou a todos para se dirigirem à sala de jantar, onde a ceia seria servida. Mais garrafas de champanhe e vinho foram colocadas à mesa. Os pratos quentes deixaram o forno para seguirem para ocuparem seus espaços na mesa. E os convidados começaram a tomar seus lugares. O empresário propôs, então, um brinde a todos. E iniciou seu discurso, com o copo e champanhe francesa à mão. A seu pedido, o aparelho de som foi desligado, para que nada atrapalhasse sua fala. Agradeceu a todos pelo trabalho, sugeriu que levantassem suas taças e brindassem àquela noite especial de tantas conquistas. Foi nesta hora que a porta da sala se abriu. O filho mais novo entrava, pela casa, segurando nos braços uma imagem do menino Jesus. O outro filho, desligou o relógio de energia da casa, deixando tudo na maior escuridão e, com um pequeno holofote nas mãos, iluminava o rapaz que, acompanhado da namorada, adentravam à sala de jantar, como se aquela fosse a Sagrada Família.
O empresário sentiu o sangue ferver no rosto. Sua esposa chorava do outro lado da sala, não sabendo ainda se de decepção ou de alegria por ver aquela cena. Os irmãos cantavam “Noite Feliz”, acompanhado por um coro... formado por todos os funcionários da empresa. Todos, desde o pessoal do escritório até o pessoal da limpeza. O empresário, agora, perdeu a fala. O casal de jovens que transportava a imagem do menino Jesus parou diante da mesa cheia de comida. Para estes jovens, não importava, naquele momento, se a comida iria esfriar ou não. O filho mais novo retirou do meio da mesa duas garrafas de champanhe, abriu espaço entre as travessas de comida e colocou ali a imagem daquele menino que tinha os braços abertos, como querendo abraçar a todos. A letra da música foi substituída apenas por um murmurar de vozes, agora mais suaves, exatamente para que o filho mais velho, que já desligara o holofote e fizera as luzes da casa se acenderem e o pisca-pisca voltar a dar sinais de vida, pudesse transmitir a todos a mensagem que preparara.
O rapaz procurou no bolso a folha de papel onde colocara sua fala, mas percebeu que a tinha esquecido ou perdido em algum lugar. Respirou fundo, olhou nos olhos do pai, chamou seu outro irmão e sua mãe e convidou aquele homem, vermelho de raiva talvez, para vir até ali, se juntar a eles. De mãos dadas, os quatro, pais e filhos, olharam nos olhos de todos os funcionários da empresa que não lotavam apenas aquela sala de jantar, mas toda a casa. O rapaz que perdera o texto sorriu para todos e disse que tinha uma mensagem especial para dar naquele momento. Lembrou que o menino Deus, que nascia naquela noite, não veio ao mundo sozinho. Precisou de uma mãe – Maria – e de um pai – José – para poder transformar em realidade o sonho do Pai Celeste que era reaproximar os homens de Deus. Lembrou que ninguém seria alguém no mundo se não tivesse ajuda de outro. Parabenizou o pai pela idéia de reunir todos os funcionários da empresa naquela noite, pois, se Deus se dera de presente para toda a humanidade, nada mais justo do que aquele homem, que vira sua empresa crescer tanto aquele ano, dar aquela ceia de também como presente de agradecimento a todos. Indistintamente. Lembrou, agora quase soluçando, pois sentira que lágrimas escorregavam pelo rosto de seu pai e que sua mãe passava o lenço nos olhos, que se os gerentes foram felizes na criação dos projetos de crescimento que nada teria sentido se todos os demais funcionários não estivessem ali para executar isso.
O murmúrio dos funcionários se transformou novamente em letra musical e o som forte de “Noite Feliz” tomou conta da casa. Todos os que ainda estavam sentados se levantaram para abraçar os colegas de trabalho, os funcionários até desconhecidos de alguns, os filhos pobres dos outros. O empresário puxou os filhos e a esposa de lado, elogiou a atitude dos garotos, mas lamentou que a comida não daria para todos. Os dois rapazes chamaram o chefe da cozinha que, rapidamente abriu a porta da copa de onde saíram pratos de salgados e refrigerantes que os funcionários trouxeram de suas casas, para partilhar aquela ceia. Mais uma vez o empresário sentiu as lágrimas deslizarem por seu rosto e não se conteve: soluçou abraçando sua família.
E todos os funcionários aplaudiram ao ver a alegria de uma família unida, principalmente quando todos pensam na mesma direção.

(1° lugar no I Concurso Internacional de Contos de uma noite de Natal, promovido em 2005 pelo Grupo Elo, de Santos) 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Montando o presépio

Quando o calendário marcava novembro, mais precisamente dia 10, se não fosse domingo, martelo, pregos e serrote começavam a trabalhar na casa vizinha. Seu Antonio chegava do serviço, no final da tarde, e já começava a movimentar os apetrechos para montar o presépio bem antes do Natal. A previsão era deixar tudo pronto no dia 1º de dezembro...
Mesmo brincando em casa com meus irmãos ou me preparando para os exames de final de ano, me concentrava no trabalho de seu Antonio: madeira serrada, madeira se juntando, prego separado, martelo trabalhando... trabalhando... encaixe pronto, madeira serrada, madeira se juntando, prego separado, martelo trabalhando, trabalhando... e lá ia o dia de seu Antonio. Era comum ouvir o barulho também à noite. E quando eu não ouvia o martelo ou o serrote, tentava imaginar o que ele estaria fazendo.
Mas no sábado eu conseguia matar a curiosidade: Fernando, filho mais novo de seu Antonio, passava em casa, me chamava e lá íamos colher sapé que seria usado para a cobertura, principalmente, da casinha onde ficaria a imagem do menino-Jesus.
Seu Antonio ia na frente, caminhando em busca do material necessário. Eu e Fernandinho - era assim que todo mundo o chamava - quase corríamos para não perder seu Antonio de vista.
Descíamos até a rua da Várzea, entrávamos na rua José Maria Marin até a linha férrea e lá, nos terrenos baldios, seu Antonio escolhia o sapé necessário.
Material cortado, amarrado e lá íamos, eu e Fernandinho, em direção a um pequeno córrego perto da Vulcabrás. Ali, encontrávamos guarus e, com pequenos sacos plásticos, recolhíamos meia dúzia de peixes cada um e íamos brincar no tanque onde dona Irene, a mulher de seu Antonio, lavava roupas. Nos distraíamos com os peixinhos até que me lembrava do presépio. Pronto!
Fernandinho ficava sozinho brincando, enquanto eu espionava seu Antonio. O sapé secava no quintal e ele começava a espalhar serragem, a instalar a fiação para as lâmpadas, o monjolo e um enorme moinho. Gostava, na verdade, do tamanho das imagens: elas tinham em torno de 40 cm de altura cada uma. Em casa, elas não passavam de 15cm.
Me distraía vendo seu Antonio colocando e testando lâmpadas. Moinho no lugar, monjolo em outro e lá ia ele testar a água que passava pelo córrego que, pacientemente montara.
O trabalho de montagem era longo. Mas antes dos últimos testes e das colocações das imagens, seu Antonio fechava as portas e o presépio só abria para visitação no dia de Natal. Até placa no portão ele colocava, convidando as pessoas para verem seu presépio. E aquilo me tomava tempo para ver: luzes piscando ao redor da armação, dentro da casinha onde estava o menino-Jesus e coberta com o sapé que ajudei a encontrar, moinho rodando, monjolo batendo, água escorrendo, moinho rodando, luzes piscando, monjolo batendo, água escorrendo, luzes piscando... Olhos perdidos em busca de um melhor visual...
As imagens brilhando, limpas, claras, coloridas... aquilo era obra de arte. Olhava para seu Antonio feliz por ser vizinho de uma pessoa importante...
Em casa eu olhava meu presépio preparado por minha mãe, meus irmãos e até por meu pai. Apesar de as imagens serem pequenas, tínhamos muito carinho com elas: não havia luzes piscando, não havia água, mas a lamparina acesa mostrava a devoção que tínhamos por aquilo tudo. E no dia de Natal, logo cedinho, a gente corria para levantar o pano que escondia a mesa do presépio para procurar o presente. Mas dona Angelina, na hora do almoço, fazia todo mundo cantar o "Noite Feliz!", anos mais tarde com Ademir, acompanhando com o violão. (Este texto faz parte do livro "Contos e Crônicas de Natal", de minha autoria)

sábado, 5 de novembro de 2011

O chofer do carro verde

Andar de carro no final da década de 1950 era algo especial. Como a maioria das ruas era, ainda, de terra, os veículos que circulavam com mais facilidade eram os ônibus, depois vinham as carroças, bicicletas e, por último, os carros. E o sonho de criança era andar de carro, sentir o cheiro do banco novo, soltar o peso do corpo e relaxar... Mas valia a pena fazer pose, principalmente se, do lado de fora, lá na calçada, estava algum garoto conhecido.
O carro que eu e meus irmãos mais cobiçávamos era o carro verde no ponto de táxi na pracinha, perto de casa, bem ao lado do campo Dragão Mecânica. Para ficar mais fácil visualizar, no local onde começa a rua da Várzea, na avenida São Paulo, Vila Progresso.
O motorista, ou chofer como a gente costumava dizer, mantinha seu Chevrolet impecável. Quando não havia passageiro, o carro ficava ali na praça, parado, enquanto o chofer passava seu paninho mágico. A gente percebia que o carro brilhava!
Andar de táxi, para nós era difícil, mas sonhar com aquele carro...
Tinha dia que a gente passava horas e horas olhando o Chevrolet no ponto! E quando percebia que tinha surgido algum passageiro e o carro ia sair, sentado no portão de casa, eu acelerava o ronco do motor com a boca e saía correndo pela rua, como se estivesse dirigindo.
Muitas vezes, no próprio degrau do portão, eu me fazia passar pelo chofer do carro verde. Cumprimentava meus irmãos que seriam os passageiros, perguntava qual era o destino, dava o preço da corrida, enchia o pulmão de ar, e saia roncando, "cantando pneu".
Quando o chofer do carro verde casou não ficamos sabendo, mas tivemos notícias uns meses depois quando, no terreno vazio em frente à nossa casa, teve início a construção de um imóvel. E como toda criança curiosa, passávamos o dia observando os pedreiros levantando as paredes, fazendo massa, concretando. Até que um dia o chofer do carro verde parou bem defronte ao nosso portão e foi observar a obra. Tínhamos descoberto quem iria morar em frente de casa.
Ele sabia que vivíamos observando seu carro e quando voltou da construção, entrou no veículo, abriu a porta de passageiro e nos convidou para uma volta. Ademir, Ana Maria e eu corremos para dentro do carro. Esquecemos até de limpar os pés, pois naquele tempo andar descalço era sinal de saúde.
A corrida era de graça, mesmo que fosse apenas uma volta no quarteirão; quando o carro voltou para o local de onde tinha saído, desci correndo para contar à minha mãe o acontecido. E foi aí que levei a bronca. Mamãe me olhou, sorriu daquela maneira que já fazem muitos anos que não vejo, e perguntou se tinha agradecido ao chofer do carro verde.
Disse que não e saí correndo para o portão quando cruzei com meus irmãos voltando para casa. O homem do Chevrolet já tinha ido embora trabalhar.
Voltei de cabeça baixa, mamãe me olhou de novo, mas Ademir corrigiu a situação, dizendo que tinha agradecido em nome de todos. E como lição de mãe fica sempre na lembrança, jamais esqueci este fato.
Mas só consegui agradecer quando, no dia da mudança, carreguei algumas caixas para dentro da casa. O chofer agradeceu a ajuda, e neste momento lembrei-me de fazer o mesmo pela carona. Mas parece que ele nem lembrava mais disso...

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Depois da tempestade...

Dia de tempestade, temporal ou qualquer chuvinha que fazia a água correr pela rua era festa para a garotada da avenida São Paulo, na Vila Progresso, no final da década de 1950. Rua de terra motivava os garotos. E quantos garotos: Adilson, Luciano, Carlos Alberto (que todo mundo chamava de Berto), Cipó, Nê, os irmãos Iotti, Ademir e, claro, eu.
Dependendo do horário, cerca de 20 garotos se reuniam para se divertir depois que a água parava de descer do céu. Apesar de meus quase oito anos, me transformava na sombra de Ademir, meu irmão mais velho, e acompanhava as ações dos garotos, quando os últimos pingos da chuva chegavam ao solo.
A rua se enchia de garotos, correndo para a água que seguia, rumo à calçada que mais parecia um barranco já que rua de terra tinha, necessariamente, de ser acompanhada de calçada igual.
A idéia era fazer uma “mureta”, colada na calçada, construindo assim uma barragem para represar a água. E o trabalho tinha que ser rápido, preparar bem o barro e ir montando o muro. A água ia se acumulando, enquanto outros garotos, com folhas de caderno, “construíam” barcos para “navegarem” na represa. Apesar de existirem os relaxados – aqueles que, com um pulo ou um chute destruíam a barragem –, a brincadeira levava horas, deixando mães preocupadas, pois o passear pelas águas poderia representar um pé cortado num caco de vidro. E isso, por obra e arte de Deus e do Anjo da Guarda, não acontecia. E leptospirose era doença que ninguém tinha ouvido falar.
Enquanto os barquinhos flutuavam pelas águas, apareciam novos artistas para aperfeiçoar o trabalho. Dois metros à frente, com o local já seco, construía-se outra mureta. E aí chegava o artista principal para concluir a obra: com um palito de sorvete iniciava, no pé da primeira barragem, uma escavação, criando um buraco por onde um filete de água começava a correr, em direção à outra mureta. Rapidamente o local se enchia, transformando-se num lago, a garotada movimentando a água com as mãos para fazer “ondas”, num vai e vem interminável...
Água fazendo volume, novos barquinhos de papel sendo construídos e a garotada se divertindo. Com muita inocência...
O que mais me chamava a atenção e o que mais gostava de fazer eram os barquinhos cobertos: folha de papel dobrada ao meio, a hora de fazer a seta, dobrando as pontas para fazer uma espécie de chapéu de soldadinho de chumbo, em seguida a formação de um cone, dobrando as duas pontas para dentro. Novo chapéu, novo cone e dobrando as pontas para fora. De novo um chapéu... o cone...puxam-se as duas pontas, levanta-se as duas abas internas e... pronto! O barco está pronto para entrar na água.
Duas pedrinhas para sugerir os “passageiros” e lá vai o barquinho flutuando em busca de seu destino...
Outra brincadeira que atraía a garotada era a “guerra”. Bolinhas de gude serviam de balas de canhão. Os participantes jogavam bolinhas no barquinho adversário, tentando afundá-lo, já que o peso da bolinha no papel realmente era a “morte”.
É hora de terminar a brincadeira. É hora de deixar a água subir até o alto da mureta e começar a descer do outro lado. Como uma cascata!!! O buraco no meio da mureta precisava ficar maior, o volume de água crescer na outra mureta, a cascata quase virar cachoeira, o barro amolece e começa a ceder... Barragem destruída, barcos acelerando ao ritmo da água, enquanto garotos riem, chutando barcos ou destruindo a mureta rapidamente, o poeta vê, com a destruição, a certeza de que, num outro dia, após uma nova chuva, tudo será construído novamente. Só para mostrar que depois da tempestade vem a esperança, a vida, o sol, um novo recomeço...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Bola de gude


Brincadeira de criança é algo que não deveria desaparecer. Mesmo quando a gente se tornasse adulto. Deveria fazer parte de um modismo, sei lá... Algo que ninguém sabe explicar, mas que toda criança gosta de brincar. Desde que tenha com quem fazer isso. Brincar sozinho é algo que não deve ter muita graça. Claro que já brinquei muito sozinho. Conversando com um amigo que ninguém via, mas com quem eu até brigava. Parecia um louco, mas brincava e brigava. Cheguei até a criar uma emissora de rádio, tanto que gostava de falar em microfone. Uma rádio minha, que só eu falava e ouvia. Ninguém jamais imaginou a existência dela...
Mas gostoso mesmo era brincar de bolinha de gude – bolinha de vidro – principalmente quando se jogava “às ganhas”. Jogar “às brincas” não tinha tanta graça, mas era preferível, principalmente se alguém quisesse me transformar em “café com leite.”
Jogar “às ganhas” era realmente perigoso. Principalmente se perdesse as bolinhas que tinha levado para a brincadeira. O jogo era “biroque” ou “triângulo”. No primeiro caso, fazíamos quatro buracos, num espaço de meio metro entre um e outro. Para vencer tinha que passar por todos os buracos e “matar” o adversário com uma “estecada” que mais tarde foi chamada de “fubecada”. Pronto! Se fosse “às ganhas”, levava a bolinha do adversário. Se fosse “às brincas”, começava de novo...
Jogar triângulo era mais perigoso, pois podia-se perder muitas bolinhas em pouco tempo. Riscava-se um triângulo no chão, colocando dentro dele um grande número de bolinhas, dependendo de quantos participassem do jogo. Ganharia as bolinhas, quem conseguisse retirá-las do triângulo. Mas se a bolinha do jogador parasse dentro do triângulo, “queimava” o jogo e começaria tudo de novo.
Tinham bolinhas que todo mundo queria ganhar. Sempre aparecia um jogador com uma bolinha de gesso ou de aço. As de gesso eram as mais sonhadas por todos. Terminada a partida, quem tinha uma bolinha de gesso corria para lavá-la, para não perder a cor. A de aço também era lavada, mas a gente enxugava direitinho, para mantê-la brilhando.
Briga mesmo sairia se alguém, ao dar uma “estecada” na bolinha adversária a quebrasse. Pronto! Era motivo de se chamar o irmão mais velho para brigar com o outro garoto, principalmente se fosse mais forte que a gente...
E Ademir era, irremediavelmente, chamado a me proteger, a me defender. Apesar de sua baixa estatura, ele era respeitado no bairro. Ninguém brigava com ele, até porque Ademir sabia conversar, trocar idéias, “convencer” os garotos sobre sua opinião.
Aliás, em toda discussão que acontecia entre dois garotos, a coisa só terminava quando alguém dizia: “vou chamar meu irmão”. Pronto! Terminava a discussão. E se não terminasse, o irmão chegava e podia até alguém sair machucado. E aí vinha a mãe discutir com a outra mãe e todo mundo na rua ficava sabendo que alguém tinha apanhado. Ninguém queria virar gozação, por isso o ideal era terminar a discussão na hora do: “vou chamar meu irmão”.
Mas até hoje, não sei porque, não conseguia ganhar esses jogos de bolinha de gude. Saía com a unha do dedão da mão direita suja e gasta, de tanto tentar jogar a bolinha mais longe. O que não conseguia mesmo era “estecar” a bolinha adversária. Além da falta de pontaria, se acertasse não conseguia atingir os quatro palmos determinados pela regra para poder jogar mais uma vez. E como eu não conseguia jogar a bolinha adversária longe, lá vinha ela atirando a minha do outro lado da rua. Pronto! Fim de jogo, fim de brincadeira. Ia para casa, cabeça baixa, xingando prá ninguém ouvir, mas realizado por ter me divertido com aquilo que eu mais gostava: jogar bolinha de gude!!!

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Sei o que é felicidade!

Comentei aqui, uma vez, que uma das maiores diversões dos filhos de seu Alcindo, da qual eu era o terceiro de uma lista de seis, era comer os produtos da horta do seu Alcindo. Mas não poderia deixar de lembrar do pomar do seu Alcindo. Claro que falei dele, quando abordei o “Meu pé de goiaba vermelha”, mas não detalhei todas as árvores frutíferas que tínhamos no quintal. Um quintal de mil metros quadrados, onde, além da horta e pomar, sobrava espaço para um pequeno campo de futebol e um quarador, todo ele gramado que, quando não haviam roupas, servia para o “goleiro” do time, “voar” para defender as bolas, já que nosso campo normal era todo de terra.
E no pomar de seu Alcindo, tinha de tudo que se possa imaginar: goiaba vermelha, laranja lima, laranja pera, laranja baiana, caqui, jambo, abacate, manga coquinho, ameixa, pêssego, maçã, goiaba branca, banana, pera d’água e jabuticaba.
A alegria era saber que, durante o ano todo tínhamos alguma fruta para saborear. E quem mais gostava de subir nas árvores e fazer a “colheita” era eu. Com uma sacola subia na laranjeira e colhia as mais bonitas para o almoço, sempre com a aprovação de dona Angelina. Em tempo de manga, preferia escolher a mais bonita para mim, separava das demais e ninguém reclamava. Afinal, eu era o “responsável” pela colheita!
Pêra d’água nunca saboreamos. Nunca deu e jamais imaginei porque isso acontecia. Só mais adulto é que soube que eram necessários dois pés desta fruta para que ela produzisse normalmente. Um pé apenas da fruta não produz. Imaginei, então, que Deus deve ter planejado direitinho o paraíso com dois pés desta pêra. Pelo menos para Adão e Eva poderem saborear este fruto permitido!
Agora, a fruta que não poderia ser colocada em sacola era jabuticava. Esta, tinha que ser numa vasilha – eu pegava uma velha leiteira, guardada numa das prateleiras do barracão do quintal – e só descia do pé quando estava cheia.
Claro que jamais deixei de saborear esta fruta. Escolhia as melhores e as comia no pé. E não sabia porque jabuticaba me deixava feliz.
Um dia, e isso não faz muito tempo, li uma frase de Paulo Gaudêncio e que me fez entender esta história da jabuticaba. Ele disse que, um dia, num jogo de futebol, quando seu filho de cinco anos, correu para pegar a bola no jogo, já que era “gandula” e esqueceu deste “trabalho” quando deparou, pela primeira vez na vida, com um pé de jabuticaba. Jogou a bola no chão e começou a saborear a fruta. Foi aí que ele disse e me fez entender esta história: “felicidade é comer jabuticaba no pé!”
Curioso é que ele disse ainda que o garoto imaginava que jabuticaba era uma fruta que “dava na feira”. Aliás, ainda hoje conheço muita gente que não sabe como é a árvore de determinada fruta. Mas se comer jabuticaba no pé nos faz feliz, com certeza, sei  que é felicidade.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A velha mestra!

O sorriso sempre foi constante em seu rosto. Diariamente, durante todo o ano letivo, ela se manteve assim: sorridente. Ensinar, para ela, representava a necessidade de todos colocarem em prática aquilo que dizia. E assim ia: bê-a-bá; bê-e-bé; bê-i-bi; bê-o-bó; bê-u-buuuuuu! E os alunos repetiam, uma, duas, dez vezes. Cartilha na mão, giz na outra e lá ia ela para o quadro-negro explicar o assunto, tirar dúvidas dos alunos.
As tabuadas também eram importantes, tanto que, uma vez por semana, ela dedicava um bom tempo da aula para nos ensinar: dois vezes um, dois; dois vezes dois, quatro; dois vezes três, seis. E assim por diante...
Tudo sem complicações! Não tinha aluno que não gostasse dela. Tudo bem que era a primeira professora de nossas vidas, já que, no meu tempo, não existia Pré-Primário, creche ou qualquer outra denominação. No meu tempo o estudo começava, exatamente, no primeiro ano primário.
E meu primeiro presente na escola foi ter dona Benedita como mestra. As aulas começavam às 11 horas da manhã e se estendiam até as 14. Sem intervalo. Direto! Sem recreio que, aliás, nem sabíamos o que era isso. E as salas de aula eram formadas por alunos do mesmo sexo. Nada de classe mista, como surgiu depois. Era bem Primeiro Ano Masculino A, ou Primeiro Ano, Feminino B, e assim por diante. Meninas a gente só encontrava na hora da entrada ou da saída.
Mas quem tinha dona Benedita como professora recebia alguns privilégios: durante o ano, pelo menos duas vezes, ela levou suas duas filhas - apesar de já serem mocinhas e os alunos não terem mais do que oito anos - para ajudar a distribuir pedaços de bolo. Uma delas, se não me falha a memória, foi no Dia dos Professores. As duas moças chegaram com uma bandeja na mão, faca, pratinhos, guardanapos e garfinhos. Nada de cantar parabéns, para não alertar as outras classes. E lá íamos nós, comendo o bolo, lambuzando o rosto, limpando com o guardanapo de papel. Mas nada de alerta. Ninguém podia saber do que rolou. O problema é que nossa classe era vizinha da Diretoria. Mas a gente sabia que não podíamos prejudicar nossa mestra. Por isso, silêncio era lei nessa hora!
Ninguém sabe explicar porque, nesta vida, as coisas de nossa infância passam depressa demais. Sem nos dar chance de aproveitar ao máximo tudo de bom que nos acontece. E dona Benedita foi uma dessas coisas que a gente não esquece jamais.
A última vez que a vi foi há mais de dez anos. Numa noite de abril, no Museu Histórico e Cultural de Jundiaí, quando eu realizava uma noite de autógrafos de um romance que acabava de lançar. E a vi saindo dali, satisfeita com o exemplar debaixo do braço, levando uma lembrança de alguém que ela havia ensinado a ler e escrever. Me lembro dos elogios que me fazia ao ver meu caderno de caligrafia. Hoje, se visse minha letra, com certeza, não entenderia um "a" sequer! Um verdadeiro garrancho! Mas tenho certeza que saberia da necessidade que tem um jornalista de escrever rápido para não perder informações. Alguém pode estranhar chamá-la de velha mestra. Mas velha nada tem a ver com idade, tempo de vida, essas coisas. Velha mestra, prá mim, significa sabedoria, conhecimento, segurança, competência. E isso tudo sempre vi em dona Benedita.
(homenagem ao DIA DOS PROFESSORES)

sábado, 8 de outubro de 2011

A missa das crianças

Missa das crianças na igreja da Vila Arens era assim: padre Hugo celebrando de costas para os fiéis, rezando em latim e padre Alberto, no púlpito, explicando as orações. A celebração, no final da década de 50 – seria errado dizer do século passado? ou tem que ser década de 1950? – começava exatamente às 7h30.
Padre no altar, acompanhado de dois coroinhas que liam as respostas, em latim, num papel plastificado que ficava nos degraus do altar. Claro que não entendíamos uma palavra das orações, mas eu tentava prestar atenção no “Dominus vobiscum...” com o coroinha respondendo “Et cum espiritu tuo”. De lá do alto, padre Alberto, um alemão simpático e agradável, que arranhava o português, mas que as crianças entendiam melhor que o latim rezado no altar, explicava o que significavam aquelas frases.
O celebrante não fazia sermão. O tempo era curto, pois a igreja ficava lotada e, logo em seguida, tinha outra missa. As missas eram de hora em hora e começavam às 5h30. Era exatamente neste horário que minha mãe participava da cerimônia. Depois vinha a das 6h30, com os Congregados Marianos; a seguinte era a nossa missa.
O que deixava as crianças arrepiadas e cheias de fé, era a forma com que o padre pedia para as crianças cantarem: “agora o refrão, todos juntos: Eu confio em Nosso Senhor, com fé, esperança e amor...” As crianças cantavam com toda força do pulmão, a igreja parece que tremia. Eu ficava vermelho – se bem que ainda fico por qualquer coisa... – para gritar a letra da melodia, sem me preocupar muito em cantar dentro do ritmo. Queria ouvir minha voz no meio das 200 ou 300 crianças que lotavam os bancos da igreja. E este era o detalhe que me fazia gostar de padre Alberto: como a missa era das crianças, ele fazia os adultos deixarem lugar para a gente. E os bancos ficavam lotados. Os primeiros eram reservados para as crianças da Cruzada Eucarística Infantil, da qual eu fazia parte. Depois vinham as crianças que estavam se preparando para a Primeira Comunhão e, mais atrás, aquelas que já comungavam normalmente, mas que não faziam parte de nenhum movimento religioso.
Contrariava um pouco aquilo que minha mãe sempre dizia – deixar o lugar para os mais velhos, onde quer que esteja... – mas eu entendia o que o padre queria dizer: se a missa era das crianças, os lugares eram delas! Só não podia chegar atrasado na igreja. Aí, o padre não perdoava a gente: os adultos tomavam conta dos lugares vazios e as crianças atrasadas ficavam em pé. Mas no domingo seguinte, a gente aprendia a lição e chegava mais cedo...
Quando o padre Hugo dizia: “ite missa est” e os coroinhas respondiam: “Deo gratia”, eu já me punha em pé, pois sabia que a cerimônia tinha terminado. Era hora de acompanhar a reunião da Cruzada e, em seguida, passar pela feira à procura de alguma novidade. Passava pela banca de doces, onde meu tio Waldemar era dono. Meu irmão Ademir trabalhava com ele e ganhava um Sonho de Valsa como salário todo domingo. Minha irmã Ana Maria já passara alguns domingos fazendo isso na mesma banca, mas não por muito tempo, pois decidiu me acompanhar na “Cruzadinha”.
Claro que as palavras em Latim sempre foram difíceis de serem entendidas e pronunciadas, mas ver padre Alberto – cujo sobrenome não sei escrever – no púlpito, como um maestro ou caminhando entre os bancos, incentivando as crianças a cantar, sempre me deram a certeza de que Deus sabe escolher as pessoas para o sacerdócio. E padre Alberto tinha um dom especial em dizer as coisas de Deus. Padre Hugo, nas reuniões da Cruzada, explicava o Evangelho, mais uma vez, para que a gente não esquecesse do que Jesus queria nos ensinar.
Foram estas pessoas que me mostraram o caminho e minha mãe, Angelina, sempre me fez caminhar por ele...

domingo, 2 de outubro de 2011

Crescer é bom?

Criança, quando é criança mesmo não tem jeito: não quer crescer. Crescer prá que? Prá ter que trabalhar, ganhar dinheiro, pagar aluguel, prestação do carro, mensalidade da escola do filho? Crescer pra que? Pra ter dor de cabeça em administrar o dinheiro que antes do final do mês acaba?
Criança mesmo, de verdade, não quer crescer! Mas se crescer, se virar adulto, e continuar com os pensamentos na infância, aí sim é felicidade em dobro! Isto porque se vive grandes momentos duas vezes: quando eles acontecem e, depois, na memória. É como se fosse uma reapresentação, repetindo, relembrando, rindo, sonhando. Quer coisa melhor nesta vida?
E tem coisas na nossa vida que só acontecem na infância! Aquela esfolada no joelho, aquela pipa perdida, aquela bola na vidraça do vizinho. Mas quebrar vidro da casa onde se mora... ihhhhhhhh. Aí vem confusão na certa. E isso já aconteceu na minha infância.
Quintal grande, espaço para um campo de futebol e lá estavam os craques da família: eu, Osmar, Antonio e Alberto, - Ademir já trabalhava para ajudar a pagar sua escola – jogando no campo de casa. Uma das traves era montada em frente à porta da cozinha, a outra no fim da rampa do portão. Bola rolando, toque daqui, toque dali e um chute mais forte faz a bola ir de encontro à vidraça do quarto de meu pai Alcindo e minha mãe Angelina.
Estilhaços voam para dentro do quarto. Um vulto aparece na porta mais assustado do que todos os craques. Dona Angelina fica agitada, nervosa! Os quatro irmãos jogadores apavorados. Mas é dona Angelina, como um verdadeiro anjo que resolve o problema: os craques tiram a medida, correm até o vidraceiro, compram o vidro, a massa e voltam para casa. Falta uma hora para seu Alcindo retornar do trabalho e o vidro precisa ser recolocado sem deixar vestígios!
Na volta do vidraceiro, dona Angelina já limpou os cacos que haviam se espalhado pelo quarto. Os quatro craques, agora transformados em vidraceiros, tentam corrigir o erro, pois ninguém quis assumir quem cometeu.
Alberto não tinha mais do que três anos, nem tinha noção do que estava acontecendo. Mas os outros três, com mais de dez, precisam aprender a lição!
E lá vão todos trabalhando: vidro colocado, um pequeno martelo para colocar os preguinhos no lugar certo e espalha-se a massa de vidraceiro para acabar com o problema. Uma faca velha serve de auxílio na colocação da massa e pronto! Serviço concluído. Agora só falta recolher a massa que caiu no chão, limpar tudo direitinho e voltar a brincar até o dia acabar.
Quando seu Alcindo chega, a conversa na cozinha, com dona Angelina, parece tranquila. Até parece que os jogadores-vidraceiros sabem que são o assunto do papo, mas ninguém põe a cara na porta...
Seu Alcindo, discretamente supervisiona a colocação do vidro. Os ”craques” se entreolham como que desconfiados de que foram dedurados.
E são chamados para uma conversa séria! Sem bronca. Apenas um aviso: a mesada do domingo seguinte está cortada para pagar o vidro quebrado. Ninguém reclama. Afinal, erro é erro e tem que ser assumido.
Mas no domingo, lá estava seu Alcindo com o trocadinho na mão, distribuindo aos filhos para comprar o que quisessem na feira. Nem que fosse para guardar e comprar vidro quebrado numa nova partida de futebol...