terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Cotidiano: solução para os bares

Se houvesse uma coluna nos jornais sobre crônicas do cotidiano, certamente este texto deveria fazer parte dela. Em minhas caminhadas diárias, cruzei, uma bela manhã, com um bar fechado. E isto me chamou a atenção! Em meu caminho cruzo com três ou quatro deles, com cadeiras nas calçadas onde os fregueses conversam e saboreiam suas bebidas preferidas, muitas vezes atrapalhando a passagem dos pedestres. E um deles, como disse, me chamou a atenção: naquele dia estava com as portas fechadas! Localizado numa esquina próxima à minha casa, não tive dificuldade em visualizar 50 metros à frente, os fregueses do bar: neste ponto, uma mercearia recebia, nesta manhã, os homens que frequentam o bar. Todos em pé, com copos nas mãos, garrafas colocadas no degrau de acesso à mercearia, conversavam sobre as mesmas coisas de todos os dias, por absoluta falta de assunto. A calçada suportava, naquele momento, oito, dez homens que, com certeza, atrapalhavam acesso de donas de casa, loucas para comprar um pé de alface ou um quilo de qualquer coisa para preparar o almoço. Segui meu caminhar e me esqueci do que acabara de ver, já que meu objetivo era o oposto dos frequentadores do bar: eu precisava manter a forma para, claro, estar bem de saúde. E lá fui eu, acelerando os passos! E foi na volta, na mesma mercearia que parei, 20 metros antes de chegar a ela, para rir do que via! Os fregueses do bar já não ocupavam mais a porta da mercearia. Não impediam o acesso das pessoas que normalmente fazem compras neste local. Debaixo da árvore, meio metro distante da porta de acesso à mercearia, uma tabua de passar roupa estava aberta, ocupando parte da calçada e sobre ela, garrafas de cerveja e copos. Passei pelo local imaginando a criatividade do ser humano em buscar soluções para todos os problemas. Mesmo que o problema seja um copo de cerveja...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Marcados pela saudade

Como dizia o poeta em sua obra “naquela mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim”, eu diria que “naquela cadeira está faltando ele e a saudade dele dói em todos nós”. Afinal, convivi durante mais de 30 anos com seu Alcides, meu sogro. Com um ano de casado, me mudei para Campinas, por causa do trabalho e, ao definir um imóvel como moradia, decidi com minha esposa, levar meus sogros para morarem conosco. Morando conosco, Alcides passava o dia fazendo vasos e recebia, ali, a visita de seus amigos. Seu Valter, seu Oliveira e seu Antonio, pelo menos uma vez por semana, passavam por ali para falar de política, de esportes e ouvir as histórias de seu Alcides dos tempos em que trabalhou na estrada de ferro. Foram quase quinze anos de moradia nesta vida, quando optamos por voltar a Jundiaí. E aqui, as coisas não mudaram muito: uma casa com quarto nos fundos e uma cozinha “agregada” e uma pequena sala, foram a residência dele e de dona Graciosa. E nos finais de tarde, lá vinha o casal ocupar o banco na frente da casa, apreciar o jardim e o movimento na rua. E se em Campinas haviam três amigos de visitas constantes, aqui o quadro mudou: os amigos debruçavam na grade para conversar com o casal e ouvir histórias de seu Alcides. Cecília, ou melhor, as duas Cecílias, dona Helena, seu Antonio, seu João, dona Beverly, seu Luiz, dona Cida, Nide, seu Tite, dona Mafalda, Norberto eram algumas das pessoas que ocupavam a grade para conversar. Alguns se aventuravam a entrar e sentar, e não havia uma tarde em que alguma destas pessoas não parasse para conversar e ouvir histórias de seu Alcides e dona Graciosa. E quando ela se foi, num domingo de Carnaval, ele manteve a rotina: sentar na frente da casa para ver o movimento da rua, ver os pássaros cantando nas árvores da rua e contar histórias para os amigos. E aos domingos, a visita era de Jorge e Luzia. Seu Dorival, o único irmão vivo, aparecia semanalmente, também para conversar e relembrar histórias da infância de ambos. As três netas, Patrícia, Fabiana e Daniele, um belo dia, optaram por presentea-lo com uma cadeira especial, com braços servindo de apoio para aquele homem que passara toda a aposentadoria fazendo vasos com pisos e azulejos e presenteando amigos com eles. Mas o tempo marca profundamente a existência de cada um de nós. Seu Alcides parou de vir caminhando para a frente da casa: agora era uma cadeira de rodas que Rita, sua filha, conduzia, mas a cadeira, presenteada pelas netas, era ocupada por ele. As outras filhas, Virgínia e Márcia sempre atentas às ações de seu Alcides. Vinícius, o neto mais velho, jamais deixou de ligar ou de passar em casa para ver o avô. E Tiago, o neto mais novo, foi um privilegiado: meu filho sempre morou junto com o avô. Alcides, ainda bom de cabeça, continuava suas conversas, já sem seu Tite que partira, sem Dona Mafalda, impossibilitada de andar, mas com os demais amigos que vinham ouvir suas histórias. E este mesmo tempo bloqueou seu andar em definitivo. Um AVC fez com que seu corpo ganhasse espaço numa cama e a dor tomou conta de sua vida. Mas apesar disso, uma vontade enorme de viver prolongou sua existência por alguns meses. A memória desapareceu e na Quarta-feira de cinzas, cinco anos e dez dias depois de dona Graciosa ter partido, seu Alcides se foi, deixando uma saudade imensa de suas histórias e de seu andar sofrido. Hoje a cadeira continua no mesmo local. Vazia! Talvez ainda esperando pelo corpo cansado deste homem que partiu quase aos 94 anos e a saudade dele dói em todos. E imagino os amigos passando pela frente da casa, debruçando na grade e encarando a cadeira vazia. Como à espera de uma palavra ou de um sorriso que não mais aparecem por ali, mas que jamais serão esquecidos.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Surfistas Ferroviários ou a História de Luzinete

QUARTO 35 Levantou mais cedo naquele dia, assustando Gerinho. “Tenho um programa com um velhote em São Paulo”, afirmou Luzinete, antes de sair de casa, no momento em que o sol começava dar sinais de vida. Caprichou nas roupas e rumou para a estação. Foi difícil resistir às cantadas e olhares dos passageiros. Desceu na Estação da Luz, em São Paulo, como combinara anteriormente e rumou para um dos hotéis da região. Fez questão de não ser vista, quando entrou no hotel. Esperou que a recepcionista se distraísse para correr até a escada e se dirigiu ao terceiro andar. Quarto 35. Aproximou-se da porta, olhou para os lados, a fim de observar se não havia ninguém por perto e virou o trinco. Pronto! Estava dentro do quarto. Ninguém! Chamou: “Ei, tem alguém aí?” Nenhuma resposta. A cama estava toda desarrumada, lençol no chão, travesseiro e pijamas debaixo da cama, calças, camisas, paletós e gravatas amontoados ao lado do guarda-roupa. Num canto do quarto, uma mala marrom de onde, com certeza, foram tiradas espalhadas pelo local. Seu rosto ferveu, ela sentiu o sangue subindo pelo corpo, depois um calafrio tomou conta da situação, suas pernas tremeram e, meio cambaleante, caminhou até o banheiro. Respirou fundo, prevendo o pior e empurrou a porta que só estava encostada e colocou a cabeça para dentro. Levou a mão à boca para conter o grito. O velhote estava morto ao lado do vaso sanitário, completamente nu. Nem parou para analisar a cena e saiu correndo do quarto. Esqueceu-se de tomar os cuidados anteriores e nem percebeu se fora vista na hora em que deixou o hotel. Já na rua, tomou fôlego e se concentrou nos fatos, para não se desesperar mais. Não era a primeira vez que se encontrara com o velhote, mas jamais imaginara que o encontraria morto. Respirou fundo, sentiu o sangue quente no rosto. Ainda não eram oito horas da manhã e o movimento nas ruas era grande. Sentiu vontade de chorar, de gritar, mas se conteve. Voltou à porta do hotel e o hall estava vazio. Subiu lentamente as escadas e, mais uma vez, chegou ao terceiro andar. Quarto 35. Entrou e trancou a porta. Dirigiu-se ao banheiro e olhou o corpo do velho. Havia sangue na cabeça e nas costas e... levou novamente a mão à boca para segurar o grito. Teve vontade de correr para a rua, como antes, mas se conteve. Voltou ao quarto, como que procurando alguma coisa. Além da cama, havia apenas um guarda-roupa à direita da mesma e uma cadeira do outro lado. Foi ali que se sentou por alguns instantes, mas num sobressalto correu até o guarda-roupa. Não tinha tempo a perder. Sorriu ao perceber que tinha sangue frio suficiente para suportar a situação, chegou até a rir do quadro que vira no banheiro, mas procurou ser rápida e pensar depois. Abriu sua bolsa e retirou um lenço que enrolou na mão. Em seguida, abriu uma das portas do guarda-roupa. Estava vazio. Abriu a segunda porta. Não havia nada! Olhou para cima e viu o sótão aberto. Apanhou a cadeira e a levou até o local mais próximo ao sótão. Foi até o banheiro, apanhou uma vassoura, chegou até a tropeçar no corpo do velhote e voltou ao quarto. Não tinha tempo a perder, não podia ficar lamentando a morte. Já em cima da cadeira e segurando a vassoura pelo cabo a ergueu até a abertura do teto. A vassoura enroscou em alguma coisa e Luzinete foi puxando, não se perturbando toda vez que a vassoura escapava do objeto que puxava. De repente, apareceu uma pasta preta. Sentiu o sangue ferver novamente em seu rosto. Puxou a pasta que acabou caindo no chão. Escutou três batidas na porta e se apavorou. As batidas se repetiram três, quatro, cinco vezes. Luzinete segurava a pasta junto ao peito. O suor lhe escorria pelo rosto, a respiração a sufocava e o desespero começou a tomar conta dela. Do lado de fora, nenhuma palavra, como se alguém esperasse que a porta se abrisse. Aguardou cinco, dez minutos. Silêncio. Aproximou-se da porta para tentar ouvir alguma coisa. Silêncio total. Voltou ao seu trabalho. Aproximou-se da cama, levantou o colchão para ver se encontrava algo e achou uma carteira. Apanhou a mesma e a colocou na bolsa. Teve forças para caminhar em direção à porta. Voltou a ouvir passos no corredor. Parou! Os passos foram substituídos pelo ruído de abrir e fechar uma porta. Silêncio novamente. Era hora de agir. Abriu a porta do quarto 35 e olhou para os dois lados. Ninguém! Desceu a escada como um furacão e, em menos de trinta segundos estava na rua, misturada com a multidão. O sol forte ajudava a esquentar seu corpo que ficara gelado com a situação. Rapidamente chegou à Estação da Luz. Pensou em entrar, mas desistiu ao ver dois PMs conversando numa das portas. Rumou então até o Metrô, que não ficava longe dali, mas deu meia volta ao ver, na banca de jornais, diante da portaria de entrada da estação, um policial lendo jornal. Atravessou a rua e acabou entrando num ônibus sem saber seu destino. Ainda estava ofegante, quando o ônibus parou num ponto, bem diante de uma igreja. Desceu junto com mais dois passageiros e entrou na igreja. Sabia que aquela pasta não combinava muito com ela. Precisava fazer alguma coisa para não chamar a atenção. Dentro da igreja o silêncio era total. Sentou-se no último banco para pensar no que fazer. Resolveu abrir a pasta. Estava fechada com chave. Blasfemou alguma coisa e saiu. Tinha medo de tomar o trem e ser notada. Entrou num outro ônibus e rumou até a estação da Lapa. Disfarçou o olhar, quando percebeu que algumas pessoas prestavam atenção nos seus movimentos. Desceu na Lapa e caminhou até a Estação Ferroviária. Eram quase onze horas e Luzinete começou a sentir fome, mas não podia parar agora. De repente, sorriu. Diante de seus olhos, como num passe de mágica, caminhando na mesma calçada alguns passos à frente, estava Gerinho. Chamou por ele. Ele virou-se e perguntou o que significava aquela pasta. Luzinete não respondeu, mas pediu a sacola que Gerinho carregava em suas mãos. Sem questionar, entregou a sacola. Rapidamente Luzinete colocou a pasta dentro da mesma, comprou a passagem e se despediu de Gerinho. Teve medo de ser reconhecida pelos marreteiros e foi ao banheiro da estação. Trancou a porta, tirou a roupa perfumada, abriu sua bolsa e retirou da mesma um shorts e uma camiseta que sempre levava consigo. Depois de se vestir, colocou a roupa perfumada dentro da sacola, enrolando a blusa na pasta. Lavou o rosto para tirar a maquiagem que insistia em não sair, apesar de Luzinete ter transpirado muito. Desalinhou os cabelos, jogou os sapatos na sacola, e saiu do banheiro, descalça. Agora sim, estava à vontade. E lá vem o trem! Luzinete respira aliviada e entra num dos vagões, sem se preocupar com o grande número de pessoas. Ela achava até que era melhor assim. A viagem foi rápida e logo chegou a Francisco Morato, onde morava. Saiu da estação correndo, louca para chegar em casa. Abriu a porta com dificuldade, pois a afobação a impedia de virar a chave. Entrou! Trancou a porta rapidamente e correu para o quarto. Abriu sua bolsa, procurando a carteira. Dentro da mesma havia a identidade do velhote - Franz Weldhorf - , mostrando que ele tinha 60 anos, seu passaporte, uma passagem para a Alemanha, trezentos dólares em notas de cem, um pedaço de papel escrito “Luzinete”. A passagem estava marcada para aquela noite, 22h25. Com a tesoura picotou os documentos de Weldhorf e a passagem. Apanhou os pedaços, embrulhou num papel e foi para o quintal. Riscou um fósforo e esperou que tudo se queimasse. As sobras de papel queimado foram enroladas numa folha de jornal e saiu de casa. Já na rua, olhou dos dois lados para ver se ninguém a estava observando. Sinal verde. Jogou a bola de papel na boca de lobo e voltou para casa. Parecia aliviada. Sorria até. Trancou tudo outra vez e voltou a sentir fome. Percebeu, então, que a tensão passara. Mas nesse instante sentiu um calafrio na espinha. Lembrou-se da pasta preta que estava escondida na sacola. Sentou-se na cama, tensa, preocupada. Pegou novamente a tesoura e, com a mesma começou a golpear a pasta, tentando rasgar o couro. Com o primeiro furo feito, enfiou a ponta da tesoura e começou a cortar. Logo percebeu o conteúdo da mesma e continuou o serviço. Jogou a pasta no chão e se atirou de costas na cama. Riu, riu bastante, gargalhava até. Foi ao banheiro e abriu o chuveiro, sem se preocupar em tirar a roupa. O fez já com o corpo todo molhado e debaixo do chuveiro. Cantava, ria, pulava, festejava. Uma festa que foi terminando aos poucos, quando a preocupação voltou a bater em sua cabeça. Fechou o chuveiro, apanhou a toalha, enrolando-se na mesma e voltou ao quarto. Apanhou a mala e começou a retirar seu conteúdo: dólares, dólares e mais dólares. ELA Percebi sua presença assim que entrei no trem. Ela estava sentada num dos bancos duros de plástico, aguardando a partida. Bermuda vermelha e camiseta preta, um par de tênis surrado nos pés, cabelos loiros, compridos e desalinhados, davam um tom de tristeza a seus olhos verdes e em seu rosto claro, manchas de chocolate e falta de água para lavá-lo. Ela não devia ter mais do que um metro e sessenta de altura. O cheiro de suor, apesar de ser apenas três horas da tarde, tornava o ambiente do vagão quase insuportável, pois se misturava com a fumaça de cigarros e o cheiro forte de cachaça vindo de um passageiro que mantinha uma garrafa plástica aberta a seu lado, no banco. Camisa desabotoada, calça rasgada em várias partes, ele bebericava a cachaça de vez em quando, direto no gargalo. No momento em que o trem se colocou em movimento, deixando a estação de Jundiaí, cidade onde eu morava, a menina levantou-se do banco e, ficou em pé, ao lado da porta. Apreciava o movimento externo, deixando o corpo livre para acompanhar o balanço do trem. Várzea Paulista não demorou muito a chegar e ela, assim que as portas se abriram, deixou a composição. Me distraí, olhando os passageiros que entravam e só voltei os olhos para a porta, por onde a menina desaparecera, assim que o trem voltou a se movimentar. Confesso que tive um calafrio. Ela havia ficado na plataforma, aguardando a saída do trem e, no momento em que as portas se fecharam, deu um pulo, colocou as mãos entre as borrachas das portas, apoiou os pés no degrau e, sorrindo com o vento batendo em seu rosto, seguiu viagem. Do lado de fora do trem. Não tirei os olhos da menina. Mas às vezes, confesso que tentava desviar o olhar para não ver a hora que ela caísse. Quando o trem chegou a Campo Limpo Paulista, ela desapareceu no meio das pessoas que deixavam a estação. Levantei-me, corri até a porta, procurando por ela, mas não consegui vê-la. Até São Paulo fui pensando nas atitudes da menina e garanto que trabalhei todo o tempo pensando nela. Minha impressão era de que ela não tinha mais do que 12 anos. Me surpreendeu o dia em que me disse que tinha 17. Só percebi que o ato da garota era comum, quando, no dia-a-dia, voltei a presenciar a cena. Garotos e moços viajavam praticamente todos os dias, bancando pingente - pessoas que andam dependuradas nas portas do trem - e muitas vezes vi, também, estes mesmos garotos e moços, subindo nos vagões para praticarem surfe. Está certo que ela era a única mulher a se transformar num surfista, mas a maioria era formada por crianças entre dez e 12 anos. Os rapazes tinham idade entre 16 e 25 anos. E todos, no início, me preocupavam, mas logo me acostumei com as cenas, torcendo apenas que nenhum deles caísse para que o trem não se atrasasse e eu não perdesse hora do trabalho. Todos os passageiros pensavam assim. A viagem de volta foi sem emoção neste primeiro dia. Estudantes discutindo de um lado, trabalhadores se distraindo com baralho de outro e os marreteiros disputando os reais dos passageiros até Francisco Morato. Ali, praticamente o trem se esvazia e segue com meia dúzia de passageiros até Jundiaí. Mas foi na hora de deixar a estação, logo depois que o maquinista fechou as portas que a vi, misturada com a multidão. O que me chamou a atenção foi sua camiseta preta e os cabelos claros. Mais suja do que à tarde, ela, agora, carregava uma sacola, cheia de não sei o que. Passei a noite pensando nela e, confesso, nem dormi direito. Às vezes eu sentia o balançar do trem e a via do lado de fora do mesmo, segurando-se na porta, rindo do vento batendo em seus cabelos. ELE - Tio, já passou de Morato? - Já. Estamos chegando em Jundiaí. - Chiiii! De novo! Tenho que dormir na estação? - Você mora em Morato? - É... Não. Claro que não. É! É sim. Moro em Morato, sim. - Por que esta confusão de cidade? - É que... nada, não. É Morato. Brigado! - Você anda sozinho por aí, toda noite? - Não. Minha amiga vem comigo. - E cadê ela? - Deve ter decido em Morato. A gente não estava no mesmo vagão hoje... - Qual o seu nome? - Gerinho. - Gerinho? - É! É isso aí, tio. É Rogério, mas todo mundo me chama de Gerinho. - Entendi. Me diz uma coisa: quantos anos você tem? - Que é isso? Interrogatório. Cê é da imprensa? - Quem te disse que sou? - Cê fica fazendo um monte de pergunta. Quem faz pergunta é da imprensa. - Como você sabe disso? - Eu conheço as coisas. Pode parecer que sou burro, mas não sou não. Nunca fui na escola. Quer dizer, fui um pouco. E se vai perguntar por que parei de estudar, eu digo: meu pai batia em todo mundo em casa. Minha mãe apanhava que nem cachorro. Eu também. Aí fui ficando de saco cheio porque o cara, além de ficá bebendo, queria que a gente trabalhasse e desse o dinheiro prá ele. Que é isso? Eu não! Fiquei cheio de vê minha mãe apanhá. Um dia deixei um bilhete prá ela. Fui imbóra. Conheci a Lú aqui no trem e divido o que sobra com ela. - Quem é Lú? - Minha amiga, sócia sabe? A gente mora numa casa legal. Ela ganha mais dinheiro que eu, mas em casa ninguém apanha, porque é só nóis dois. Ela não enche meu saco e nem eu encho o saco dela quando ela arruma os home dela. - Ela é garota de programa? - É. É assim que ela fala que é. Mas hoje ela tava marretando. Cê não sabe o que é isso, né? Pois eu conto: marretando é que a gente fica vendendo tranqueira prás pessoa. O negócio é vendê. Quanto mais, melhor. Mas hoje eu tava de saco cheio, dor de cabeça. Acho que cherei muito e ela fica brava comigo e vende no meu lugar. Aí ela não arruma home. Eu gosto mais assim, pois nóis fica junto. Ela conversa comigo, conta história e a gente brinca. Mas ela não deixa eu por a mão nela. Um dia eu quis brincá de home e mulher com ela e ela ficou brava. Nunca mais! Eu tinha de me esforçar para não rir. Mas confesso que já estava gostando deste garoto. Jundiaí chegou e ele se levantou do banco, olhou pela janela, esfregou a mão nos cabelos, sorriu para mim e garantiu que iria dormir na estação. - Tio, fico por aqui mesmo. Durmo naquele banco e, quando tiver trem vou embora. Não é a primeira vez que passo a noite fora. A Lú também faz isso e ninguém reclama. É assim que a gente vivemos. Cada um faz o que quer, não enche o saco do outro e tudo corre legal. Tchau! Ele correu, sentou num banco e ficou me olhando caminhar pela plataforma. Quando cheguei junto ao portão de saída, olhei para trás, mas ele já se ajeitava para dormir. Gerinho era um menino triste. Cabelos pretos, encaracolados, olhos verdes, parecidos com os da menina. Shorts e camiseta rasgados e sujos. Sem condições de freqüentar escola, Gerinho leva uma vida igual à de muitos meninos de rua. Foi com nove anos, depois de dois anos de escola que ele resolveu começar a trabalhar. Foi no trem que encontrou refúgio e distração. Mas foi ali, também, que formou seu grupinho de amigos e que acabou transformando-o num viciado. A VIAGEM Morar em uma cidade e trabalhar em outra é, sem dúvida cansativo. Em minha profissão (sou jornalista e meu nome é Carlos Pedroso), o desgaste físico, provocado pela viagem, chega a ser maior do que o mental. Mas, confesso, jamais imaginei que viajar de Jundiaí a São Paulo, pela Estrada de Ferro, pudesse se transformar numa aventura. A maior de todas, a mais difícil, a mais incrível de todas as aventuras. De um mero passageiro de trem, dentre os um milhares que circulam diariamente, não imaginei pudesse me transformar em suspeito de furto, assassinato ou sei lá mais o quê. E quando os fatos apareceram, confesso, estava envolvido neles até o pescoço, sem chance de sair fora, de mudar minha condução nas viagens. As viagens, na verdade, eram tranqüilas e, muitas vezes, cômicas. Os marreteiros e muitos passageiros eram a atração, o espetáculo. Me lembro de uma passageira que me advertiu uma vez: “moço, não encare as pessoas, você nunca sabe para quem está olhando. O melhor é fixar os olhos num ponto qualquer no vagão, na porta, por exemplo, ou nas janelas abertas, do que encarar alguém”. Sua frase ficou por muito tempo em minha cabeça, principalmente depois que comecei a me envolver com fatos que não me diziam respeito. Os trens são antigos, sujos e mostram o descaso dos responsáveis pelos mesmos. Na verdade, fui obrigado a fazer uso desta condução. Não imaginava que ela fosse me envolver tanto. Foi em fevereiro de 95 que tudo começou. Isso, depois de ter passado uma noite inteira no Terminal Rodoviário do Tietê, por causa das chuvas que alagaram São Paulo. No dia seguinte, eu não tinha como ir ao trabalho. As rádios diziam que o terminal rodoviário estava alagado e que a única chance de as pessoas de Jundiaí chegarem à Capital, seria através dos trens. Pronto! Aí estava minha solução. Não precisava faltar ao trabalho, como minha família havia proposto. “Pai, a gente fica jogando video-game”, dizia meu filho. “Faltar uma vez não tem problema. Será que você é insubstituível?”, perguntava minha esposa. O início da viagem, em Jundiaí, onde o número de passageiros, espalhados pelos seis ou oito vagões não chega a cem. Desse total, mais de cinqüenta não pagam passagem. Não que sejam idosos e que estejam isentos de pagamento. Na verdade, são pessoas que chegam à plataforma, por ruas próximas à estação sem serem molestados. Não há policiamento, segurança ou qualquer coisa parecida com isso. Se o número de passageiros cresce nas estações seguintes, os vagões não ficam cheios. Os bancos só se completam em Francisco Morato e as primeiras pessoas a se colocarem de pé aparecem em Franco da Rocha. Isso, claro, no meu horário de viagem, que é na parte da tarde. Em horário de pico, a lotação acontece já em Morato, aparecendo vagões completamente lotados, com passageiros se pendurando nas portas para poder viajar. PASSAGEIROS “Eu bebo porque neste mundo/ eu nunca tive um amor sincero e você que vem por aqui/ é o amor que tanto quero./ Meu bem, você não se lembra/ de ouvir a voz deste sonhador/ na estrada longa da vida/ venho esperando meu grande amor/ Meu primeiro amor...” O balanço do trem, o grito dos estudantes jogando truco ou dos marreteiros brigando por fregueses, acabam atrapalhando o “cantor”. Até ele pedir uma cerveja. - Dá uma aí, cara! - Pronto! Ele passa R$ 5,00 ao marreteiro, que reclama que está sem troco. Uma menina, que passa por perto, se oferece para ajudar. - Abre prá mim. - pede o bêbado ao marreteiro. - Pô! Até isso você quer que eu faça? Se vira cara. - retruca o marreteiro. - Cadê meu troco? - Calma! A garota não voltou. Não vou te roubar, não! Já fui embora? Não tá vendo que estou aqui? O bêbado se cala, a menina chega com o troco e o marreteiro vai embora, O bêbado continua: “Aqui não falo nada. É lugar público. Mas vamô lá em Franco da Rocha. Eu chamo a turma prá ver quem está certo. Eu ou ele. Se eu estiver certo, ele se dá mal. Se eu estiver errado minha turma dá um jeito nele...” \\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\ A chuva deixava os passageiros apreensivos, mas o trem seguia sua viagem com pouco mais de atenção. Um bêbado discursava do outro lado do vagão, sendo impossível, para mim, entender o que dizia. Mas o riso de algumas pessoas dava a entender que não era nada sério. Uma morena, com seus 21 anos declarados, afastou-se lentamente do local. - É difícil aturar bêbado. No início da conversa é até engraçado, mas depois fica chato. Ele fica falando e cuspindo em cima da gente. É terrível. Odeio bêbados. A começar por meu pai. Quando eu era criança ele vivia batendo em minha mãe. Eu e meus irmãos nada podíamos fazer. Víamos e não reagíamos. Um dia, eu e meus dois irmãos mais velhos viemos tentar a vida em São Paulo. Somos de Curitiba. Meu irmão mais velho, que deve ter um metro e noventa de altura, chamou meu pai num canto e ameaçou, dizendo que se ele batesse em minha mãe alguma vez, se acertaria com a gente. Um dia, mamãe ligou dizendo que havia apanhado. No dia seguinte, chegamos eu e meus dois irmãos. Eles amarraram meu pai numa árvore e bateram nele até ele pedir perdão. Nunca mais ele levantou a mão para a minha mãe. Agora, eu tenho uma irmã que não presta, porque levar essa vida é só para quem não presta mesmo. O marido dela é um bêbado, que chega em casa todo dia de fogo e bate nela. Eu falei que ela não presta, porque levar essa vida é só ela mesmo. Se ela prestasse, pegava as crianças e desaparecia. A lei existe prá que? Ela pediria uma pensão mensal e ele teria de pagar e pronto. Não viver apanhando de bêbado. Eu nem converso com meu cunhado por causa disso. E não falo com meu sogro também. Um dia, meu sogro chegou bêbado em minha casa e começou a falar mal de meu marido. Pensa que me assustei? Peguei uma panela e bati na cabeça dele. Ele nunca mais apareceu na minha frente. Só peço a Deus que minha filha de dois anos não se case com um bêbado. Odeio bêbado. Olha, meu marido, graças a Deus, não tem vício: não fuma, não bebe, não usa drogas. Eu e ele trabalhamos o dia todo, pois a vida está difícil. E não tenho medo de batente, não. Esse negócio de dizer que mulher é sexo fraco é de alguém que nunca levou um tapa de uma mulher. \\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\ Ronaldo é soldado da PM e mora em Osasco. Às vezes viaja para Campo Limpo, onde tem parentes. Não tem mais do que 25 anos e conhece todo mundo no trem. - Faço amizade fácil. Só não gosto de andar fardado. Meu negócio é calça jeans e camiseta prá fora da calça. Dá mais liberdade. Mas o que gosto é de ver o trem cheio. A gente se diverte, mas ao mesmo tempo é preciso cuidado. Já cheguei a dar tiro dentro do trem para assustar bandidos. Uma noite, era mais ou menos essa hora, meia noite e pouco, quando o trem chegou a Botujuru. Desceu todo mundo e acabei ficando sozinho no vagão. Mas na hora em que soou a campainha, entraram dois rapazes no trem. Bonezinho na cabeça, davam a impressão de que eram integrantes desses grupos de rap e isso me deixou aceso. Eu estava lá, daquele lado, bem no canto do vagão. Eles entraram do outro lado, bem daquele canto. E vieram se aproximando. Com vagão vazio, eles tinham uns sessenta lugares para sentar, mas eu percebi que vinham andando em minha direção. Olha, só de lembrar, fico arrepiado. Naquela hora me gelou o coração. Eles se aproximaram, lentamente, com as mãos nos bolsos. Eu estava de jeans e camiseta, mas por baixo da camiseta, eu tinha essa arma (e tirou do coldre para me mostrar a arma da PM). Estava também com a minha, mas ela estava na minha bolsa e ia ser difícil apanhá-la. Então, lentamente, enfiei a mão por baixo da camiseta e tirei a arma da cintura e esperei que se aproximassem mais. Quando estavam a dois metros, mais ou menos de mim, levantei de pé e mostrei a arma para eles gritando: “parem aí. Mãos para cima”. Não havia reação, a não ser a de continuarem caminhando em minha direção. Então não perdi tempo, percebi que seria eles ou eu. E dei um tiro para cima. No mesmo instante os dois levantaram as mãos e pararam. Um deles, cara, tinha um três oitão na cintura. Quando o trem parou, os dois já estavam dominados. Liguei prô meu irmão que também é polícia e demos o flagrante por tentativa de assalto. O pior, cara, é que a gente trabalha o dia inteiro, vai para casa, cansado e vem um mané qualquer querendo te mandar prá lá (matar). É terrível. Olha, nunca fique sozinho num vagão. Apesar de a porta estar fechada, você não sabe se há um desses loucos surfistas que podem, de repente, entrar pela janela e aparecer na sua frente... DESTRUIDORES Na minha frente, com a maior cara de pau e contando com a cumplicidade do funcionário da bilheteria, o rapaz chegou próximo à roleta e passou por baixo da mesma, sem pagar. A falta de vontade dos trabalhadores da estrada de ferro aparece na face de cada um. O esquema dos bilheteiros é conhecido por muitos marreteiros e trabalhadores em geral, principalmente os que têm direito ao vale-transporte. É comum ver bilheteiro comprando os vales-transportes dos passageiros que quase não usam o trem ou que conseguem embarcar de graça. Para uma passagem entre a Luz e Francisco Morato, o funcionário da estrada paga R$ 0,50 e fica com os mesmos no bolso. Quando o usuário paga os R$ 0,65, o funcionário coloca as moedas num bolso e tira do outro um vale-transporte, ficando com o lucro (R$ 0,l5). Nas passagens até Jundiaí, o lucro é maior. O funcionário da estrada compra por R$ 1,00 o passe e faz a troca, quando o usuário paga R$ 1,60. A péssima estrutura da Estação da Luz facilita os passageiros a não pagarem para viajar nos trens de subúrbio. As pessoas que vêem do Metro encontram, no corredor central, à direita, a bilheteria, e à esquerda, uma porta de ferro encostada. Para se chegar à plataforma é obrigado a descer as escadas. Quem chega de trem, sobe a escada e chega ao corredor, passando pela porta de ferro, bem diante da bilheteria. É comum ver pessoas abrindo a porta e descendo até a plataforma sem pagar passagem e sem ser admoestado por qualquer funcionário. Dentro do trem, principalmente à noite, não há fiscalização. Assim, quem viaja até Jundiaí acaba pagando os R$ 0,65 como se fosse até Francisco Morato ou viajando de graça. Isso acontece na Estação da Luz, no Centro de São Paulo. Nas estações entre a Capital e Jundiaí é fácil ver as telas que cercam as plataformas cortadas e muitas pessoas passando por elas, não pagando passagem. É claro que o preço é baixo e que se transporta um número imenso de pessoas. A estrada tem um levantamento que mostra que, diariamente, se transporta mais de um milhão de pessoas. Perto de trezentos mil não pagam passagem, ou porque são idosos, ou porque passam pelas telas arrebentadas, pulam muros, passam por baixo das catracas, enfim, dão um jeito de se livrar do pagamento. E muitos dizem que não pagam, simplesmente porque os trens estão sucateados, não há segurança e conforto. Quem viaja sentado, precisa estar atento o tempo todo. As pessoas vão se aproximando, se esfregando umas nas outras, e é comum ver um cotovelo batendo na cabeça de alguém sentado. Às vezes é o cotovelo que passa rente à cabeça ou o sovaco que bate no nariz. Agora, viajar em pé, é terrível! Se não bastassem os passageiros se esfregando ou alguém pisando em seu pé, há os marreteiros, com suas caixas de isopor, empurrando todo mundo. Há, ainda, o risco de assalto. O esfrega-esfrega é ainda maior quando algum tarado consegue se aproximar de mulheres indefesas. Não adianta a mulher reclamar (se está incomodada, tome um táxi, diz o indivíduo), pois a situação não muda. Às vezes, nem mudar de lugar adianta, pois é perseguida pelo tarado. Cadê a polícia? Em cada vagão cabem, sentadas, de 62 a 90 passageiros e o dobro deste número cabe em pé, dependendo do tamanho dos vagões. Oito vagões compõem o trem, às vezes seis. E é na Capital que o número de pessoas cresce. Quem embarca em Jundiaí tem uma viagem tranquila até Francisco Morato. É ali que a situação começa a se complicar, pois quando o maquinista abre as portas do trem, parece o estouro da boiada. As pessoas voam para os vagões, atropelando e pisando quem está na frente. Se existe alguém que quer descer, deve ficar longe da porta, pois corre o risco de se ferir. Em Franco da Rocha o número de pessoas em pé já é enorme. Na Barra Funda as portas já não se fecham. Primeiro, porque os passageiros as seguram abertas e, segundo, porque na maioria das vezes, se fecharem, pelo menos umas cinqüenta pessoas não conseguem embarcar. Apesar de haver trem, na Capital, a cada dez minutos, ninguém espera pelo seguinte: - Se o trem vier cheio, a gente não espera outro - diz um surfista, louco para pegar um vagão cheio, para poder exibir seu talento do alto do trem. Se não existe fiscalização, o passageiro que se cuide. Muitos garotos, sempre acompanhados por uma pessoa de mais idade, passeiam por vagões olhando passageiros. Existe horários em que os vagões estão quase vazios. E esses garotos aproveitam para atacar as pessoas e roubas seus pertences, num verdadeiro arrastão. - É comum ver passageiro puxando uma arma. Estou acostumado e isso não me assusta. Só temo pelas mulheres e crianças que também presenciaram essas cenas. - Eu não me assusto também. Já vi gente morrer perto de mim. Um dia, dois passageiros, que pareciam dopados, discutiam no vagão, sentados bem ao meu lado. Num dado momento, um deles se levantou, para descer, mas continuou discutindo com o outro. O que estava sentado, tirou sua jaqueta de couro e começou a bater no outro com a jaqueta. Só que eu e as outras pessoas que estavam sentadas por perto, acabamos levando jaquetadas, também. O que estava em pé, ria da cena e caminhou para a porta para sair. No momento em que a porta se abriu, o outro enfiou a mão no bolso da jaqueta, puxou um revólver e deu dois tiros no outro que caiu fora do trem, na plataforma. A porta se fechou, o trem partiu e o assassino ficou dentro do trem, bem ao meu lado. Um homem reclamou do que ele fizera e foi ameaçado: “Que foi, não gostou? Quer fazer companhia prá ele? Tem mais bala aqui, sabia? MARRETEIROS - Achei! O policial se empolga com sua busca e muita gente acabou ouvindo e vendo o que estava acontecendo naquela tarde chuvosa na estação de Caieiras. Na laje, acima do banheiro, ele encontrara três caixas com duas dúzias de refrigerantes em cada uma. Um outro policial se aproximou para ajudá-lo. De cima da laje, ele passou a primeira caixa para o companheiro. Molhada pela chuva, a caixa acabou se desmanchando, deixando cair meia dúzia de lata no chão. O policial conseguiu segurar as outras, mas não pode impedir que as que caíram no chão, fossem apanhadas por quem estava na plataforma. Felizes, as pessoas se afastaram correndo, como se tivessem feito algo errado ou encontrado um tesouro. Na plataforma, um policial se aproxima de dois marreteiros que conversam sobre as dificuldades que encontram no trabalho. - Vão ficar aí parados? Ou se mexem ou tomo o material de vocês. Não foi preciso dizer duas vezes para que os dois desaparecessem na multidão. O mais engraçado é que, mesmo com a busca, uma moça, com seus vinte anos, passa pelos policiais, puxando um carrinho com seis caixas de cerveja. Ela entra no trem que já chegara à estação. Lá, um rapaz, a espera com uma caixa de isopor, cheia de gelo. Rapidamente enchem a caixa com latinhas de cerveja e saem vendendo. Mesmo sem esperar que fiquem geladas. A ação da polícia ferroviária só acontece quando lhe convém. Toda viagem os marreteiros ficam atentos nos vagões, procurando um policial, pois não é permitido a venda de mercadorias. Uma tarde, vi um garoto, que não tinha mais do que dez anos, passando de um vagão para outro. De repente, na frente dele, três policiais a paisano, fecham o caminho do garoto e tiram de sua mão a mercadoria que vendia. O menino não reclama, dá meia volta e sai, com os olhos cheios de lágrimas. Ninguém sabe o destino que é dado à mercadoria apreendida, nem se é feita alguma ocorrência. O fato é que os marreteiros estão sujeitos ao que chamam de “pedágio”, pois a mercadoria é recolhida, não há advertência e, no dia seguinte, ou ainda no mesmo dia, o marreteiro está de volta aos vagões, com outra caixa de mercadoria. - Preciso ganhar meus trocados. Hoje perco, amanhã recupero, passando mais tempo no trem - diz um dos marreteiros que, numa semana perdeu três caixas de cerveja e teve de trabalhar dezoito horas num dia, para recuperar o que perdera. A afirmação de um outro marreteiro, confirma o que eu imaginava: “A gente paga pedágio para os policiais. Se não pagar, corre o risco de ser perseguido. A gente tem de se sujeitar a isso. Para você ter uma idéia, um policial foi morto uma vez, em Francisco Morato. O que se comenta é que ele foi cobrar pedágio do marreteiro que não quis pagar. Aí, o policial lhe tomou a mercadoria. À noite, o policial foi morto”. \\\\\\\\\\\\\\ - Olha o relógio. Um é dois real, três é cinco. Olha o relógio. Tem ponteiro giratório... - Água, água, olha a água. Quem tem sede bebe água. Olha a água. - Olha o canivete suíço. Dois reais cada um. Tem treze utilidades. Olha o bicho, olha o bicho, olha o canivete suíço. - Salgadinho, é cinqüenta o salgadinho. - Cerveja. Um real ou dois passes. Olha a cerveja. Aceito passe de trem, de ônibus, passe de carroça, de avião, passe de mágica, de macumba. Aceita arroz, feijão. Aceita qualquer coisa. Olha a cerveja. - Olha o pastelzinho. Dez centavos o pastelzinho. Um passe leva cinco. A competição dentro do trem é grande. Quem fala mais alto, nem sempre tem mais chances de vender. Existem marreteiros que apresentam produtos mais caros. Um vende relógio, que ele afirma ser Dumont, por R$ l0,00, enquanto nas lojas são vendidos por, no mínimo R$ 30,00. Relógios de parede, guardas chuvas, bombas para encher pneus de bicicleta e carro também fazem parte do “arsenal” de produtos oferecidos pelos marreteiros. Existem passageiros que consideram o trem um verdadeiro shopping. Um shopping-trem... - Olha a bomba de encher pneu de bicicleta. Enche também bola de futebol, pneu de carro, de caminhão, pneu de avião, de foguete. Enche até o saco. - Olha o guarda-chuva. Três reais o guarda-chuva automático. - Olha a balinha de goma. Cinqüenta centavos. Balinha de goma, cinqüenta... - Bala de goma sabor iogurte, dez centavos. Dez centavos a bala de goma. Dois marreteiros vendendo produtos semelhantes. O primeiro, um moço beirando os trinta anos, com cara de evangélico, o outro, um velho, provavelmente aposentado, tentando completar seu orçamento. O primeiro, alto, forte, vendendo saúde, garante que não vende sua balinha por menos. - Tem gente que pede para vender dois por cinqüenta. Eu falei que assim não vendo. Prefiro levar para casa e dar para meus filhos comerem. Ontem, não consegui vender nenhum. Hoje, já são cinco da tarde e vendi dois. O velhote parece ter mais sorte. Por vender um produto parecido mais barato, é mais aceito pelos passageiros. O encontro entre ambos no trem é inevitável. - Cai fora, velho! - ameaça o rapaz. - Cai fora você, seu palhaço - retruca em voz alta, dentro do trem, sem se preocupar com a reação das pessoas e continua: “Bala de goma, sabor iogurte, dez centavos..” O que mais chama a atenção é o número de crianças. Meninas de cinco, seis anos, que mal sabem falar, atravessam os vagões gritando o que as pessoas têm dificuldade de entender. Enquanto num ônibus, uma criança não pode viajar sem documento, no trem, qualquer criança, acompanhada ou não, viaja tranqüilamente. Os marreteiros procuram sempre o mais barato para comprar, pois querem melhorar os lucros. Muitas vezes roubam e acabam presos. Existem os que compram produtos vencidos, principalmente refrigerantes. O passageiro não tem costume de ver a validade e isso facilita o trabalho dos marreteiros. FATOS Estava sentado, como de costume, no terceiro vagão. Era mais fácil quando o trem chegava na Barra Funda, pois a porta se abria junto à escada rolante, facilitando minha subida até o hall, onde poderia, então, chegar ao metrô. O trem estava cheio, pois já tínhamos saído da estação Baltazar Fidélis. Foi quando olhei para a porta, do outro lado do vagão e reconheci Gerinho do lado de fora do mesmo, feliz da vida ao bancar um pingente. Percebi, então que dois rapazes se aproximaram da porta onde o garoto se divertia. A cena foi rápida: um deles puxou uma faca e começou a espetar as mãos de Gerinho. Ele começou a gritar, mudando toda hora a mão de lugar, tentando fugir das espetadas. Fiz menção de me levantar, quando, ao meu lado, um outro rapaz encostou um revólver em minha barriga. Confesso que senti medo. A estação de Franco da Rocha já estava bem perto e Gerinho continua tentando fugir das espetadas. Quando o trem reduziu a velocidade, ao entrar na plataforma, Gerinho pulou. Os dois rapazes forçaram a porta para abrir, mas nada conseguiram. Só saíram do trem, para iniciar a caça ao garoto, quando o maquinista abriu as portas. O rapaz, ao meu lado desceu, mas ficou junto à porta, para impedir que alguém saísse em socorro ao menino. O chefe da estação soou a campainha, o maquinista fechou a porta e o trem pôs-se em movimento, sem que eu pudesse perceber o que acontecera com o garoto. Desci em Caieiras e fiquei aguardando o próximo trem para ver se descobria alguma coisa. Nada! Gerinho não apareceu e eu tive de seguir para São Paulo com esta dúvida. Foi assim durante a semana toda: Gerinho tinha desaparecido! Uma semana depois, logo que cheguei à estação em Jundiaí, para tomar o trem para São Paulo vi a menina que, mais tarde tive certeza ser Luzinete, apesar de já desconfiar disso. Ela estava sentada num dos bancos na plataforma, com uma caixa de chocolate na mão e uma mochila entre as pernas. Entrei no vagão e aguardei, pacientemente, a partida do trem. A viagem seguiu tranqüila até Botujuru, quando percebi a presença da menina no vagão em que eu estava. Passou pelo vagão oferecendo seu produto e olhando para os lados. - Olha o Sufler, um real ou dois passes. Olha o Sufler... De repente, aproximou-se de mim: - Moço, o trem tá cheio de polícia. Será que o senhor não pode segurar esta sacola para mim? Tem uma dez caixas de chocolate aí, e se me pegarem, vou ter de trabalhar uns três meses para recuperar o que perder. Depois apanho de volta.” - disse Luzinete sorrindo para mim. Segurei sua mochila entre as pernas, enquanto ela mudava de vagão na estação seguinte. À medida que o trem se aproximava da Barra Funda, eu ia me preocupando. Os marreteiros trabalhavam tranqüilamente e Luzinete não aparecia para apanhar sua mercadoria. Nem sinal dos policiais ferroviários no trem. “Estação Barra Funda”, anunciou o maquinista pelo alto-falante do trem. Levantei-me e desci, na esperança de encontrá-la na plataforma. Caminhei até o primeiro vagão e nada de Luzinete. “Está de partida o trem com destino a Rio Grande da Serra”, anunciou o alto-falante da estação. As portas se fecharam e o trem partiu, deixando-me plantado na plataforma. Luzinete desaparecera. Fui obrigado a levar comigo sua mochila até o serviço. Estava me sentindo estranho com uma pasta preta numa das mãos e uma mochila verde e vermelha na outra. Caminhando até o metrô sentia as pessoas me olhando. No serviço tive vontade de vender os chocolates, para ajudar a garota, mas, confesso, tive vergonha. O serviço transcorreu tranqüilo e eu não via a hora de apanhar o trem de volta. Luzinete não estava nele. Revirei o trem de ponta cabeça, mas nada da menina. O trem esvaziou em Francisco Morato e eu fiquei, mais uma vez, sem saber o que fazer. A campainha da estação soou e o maquinista fechou as portas. Antes de o trem se colocar em movimento, vejo na plataforma, olhando para mim, Luzinete. Ela se aproxima da janela e diz: “guarda prá mim, um dia peço de volta”. O trem acelerou sem me dar chance de dizer uma palavra ou de apanhar a mochila e jogá-la na plataforma. As quatro pessoas que estavam no vagão nem prestaram atenção ao que acontecia do outro lado e nem ouviram os palavrões que proferi, atirando a mochila no chão. Já em casa e depois do banho e do jantar, decidi abrir uma caixa e comer um Sufler de “sobremesa”. Assim que abri a mochila percebi que as caixas estavam sem a embalagem plástica. Ao abrir uma das caixas, senti o sangue ferver em meu rosto. Minhas mãos começaram a tremer. As lentes de meu óculos se embaçaram pela sensação de traição que senti. A caixa, ao invés de chocolate, estava cheia de dólares. Fui obrigado a sentar! Minhas pernas estavam bambas e percebi que minha voz desaparecera. De onde aquela menina, com chinelos velhos, roupas rasgadas, cabelos despenteados e com o corpo cheirando a suor, havia conseguido todo aquele dinheiro? Pensei em contar nota por nota, caixa por caixa, mas desisti. Afinal, o que havia acontecido comigo? Por que eu estava envolvido num roubo? Aquela menina não tinha como conseguir dólares vendendo cerveja e chocolate no trem. Pela minha mente, vi um filme dos últimos dias, tentando descobrir alguma coisa. Lembrei-me de Gerinho, sendo atacado pelos rapazes no trem e de seu desaparecimento. Lembrei-me de Luzinete que também andara sumida. É verdade que não os tinha visto juntos ultimamente, mas sabia que eram amigos e imaginei que estivessem metidos na mesma história. Talvez fosse por esse motivo que Luzinete decidiu deixar os dólares comigo. Talvez estivesse, como Gerinho, sendo ameaçada e estaria mais tranqüila, se livrando dos dólares. Mas por que eu? Será que as ameaças sofridas por eles não recairiam, agora, sobre mim? Respirei fundo e senti que o ar me faltava. Pronto! Eu estava envolvido com um roubo. Era isso, Luzinete e Gerinho eram ladrões e trabalhavam em conjunto. Mas de quem estariam roubando dólares? Na manhã seguinte, depois de uma noite sem dormir, apanhei uma das notas de l00 dólares e procurei um doleiro. Queria saber se aquele dinheiro era verdadeiro. Negociei com o doleiro, entreguei-lhe a nota de cem que, depois de examiná-la, a colocou no bolso. Eram verdadeiras! Voltei para casa e apanhei novamente a mochila. Eram 10 caixas de Sufler, cheias de notas de cem dólares. Notas novas que davam a impressão de que nunca foram manuseadas. Em algumas caixas, as notas estavam bem arrumadas, mas em outras, percebia-se que, quem as ajeitara estava cansada de colocar tudo direitinho. Retirei o dinheiro das caixas e contei. Nota por nota, caixa por caixa. Cada pacote de mil notas eram recolocadas nas caixas novamente e lacradas. Arrumei todo o dinheiro em dez caixas. Na última, faltavam mil e cem dólares. Cem eu havia trocado com o doleiro. Os outros mil, deduzi que Luzinete havia apanhado para gastar. Cheguei à conclusão de que Luzinete havia roubado, não sei de quem, um milhão de dólares. Era muito dinheiro para eu manter em casa, mas não tinha idéia do que fazer com ele. O ENCONTRO Eu estava acostumado a tomar o trem das 15hs13, mas naquele dia percebi que algo de errado havia acontecido. Haviam muitas pessoas no trem e deduzi, então, que a composição anterior havia sido suprimida. Era comum ouvir, nas estações, os microfones anunciando que alguma composição havia sido suprimida e eu via o rosto nervoso das pessoas na plataforma. A viagem começou tranqüila, mas foi em Francisco Morato que ela se tornou insuportável. A lotação era total, mas ninguém deixou de fumar, nem os marreteiros de trabalhar. Chegando em Vila Clarice, percebi que Gerinho entrara no vagão onde eu estava. Tinha as mãos vazias. Apenas um curativo em sua mão esquerda, denunciava os ferimentos sofridos outro dia. Na estação seguinte - Pirituba -, entrou Luzinete e sua caixa de chocolate. Os dois encostaram num canto e, por causa do volume de pessoas, preferiram não vender. Achei que seria o dia de cobrar de Luzinete o “presente” que me dera. Não foi difícil ela perceber minha presença. Quando o trem deixou a estação da Lapa, porém, o clima se complicou. Mais passageiros e mais sufoco. O ar estava irrespirável, com cheiro de cigarro, suor e xixi. De repente, Gerinho se vira para Luzinete e grita: “Olha eles lá!” A menina é ágil. Vira-se para o meu lado, pois estou sentado junto à porta e de costas para a janela, pede licença, senta em meu lugar, levanta os braços em direção à janela aberta, coloca os pés sobre os bancos e joga o corpo para fora do trem. Nesse momento, percebo que três rapazes - os mesmos que ameaçaram Gerinho - seguirem em minha direção. Gerinho aproveita o grande número de pessoas e se encolhe num canto, ao lado de um banco, sentando no chão, não sendo visto. Os três não conseguem alcançar a menina. Ela já está em pé, na janela e, de um impulso, desaparece da vista de todos, alcançando o alto do trem. Os três empurram as pessoas e se dirigem à porta, aguardando a próxima estação. Luzinete está em cima do vagão, surfando. Tenho certeza disso... Em menos de dois minutos chegamos à Estação Água Branca. O número de pessoas para embarcar é pequeno, o que facilita a saída dos três perseguidores. Antes porém de o trem abrir as portas, percebo Luzinete descendo do lado oposto à plataforma. Ponho-me em pé, procurando ficar entre os três e a janela por onde se vê Luzinete. A intenção é impedir que, se olharem para trás, a vejam. Assim que o trem pára, ela pula no chão, atravessa o trilho e chega do outro lado. Rapidamente, ela sobe a plataforma e segue em direção à saída da estação. Os três correm de um lado para outro na plataforma, olhando para cima, procurando em vagões. Gerinho não salta, continua escondido em seu canto. Finalmente, o chefe da estação dá o sinal, o maquinista faz soar a campainha e as portas se fecham. Gerinho salta e os três, por não terem encontrado Luzinete em nenhum local, se dividem, ficando cada um em um vagão. Também desci, ao perceber que os três haviam entrado no trem. Gerinho pára ao meu lado, sorrindo da esperteza da garota. Assim que o trem parte, ela reaparece na plataforma oposta, no meio das pessoas, e se dirige à escada, para atravessar para o lado da estação onde eu e Gerinho estávamos. Ela se aproxima rapidamente e nem respondo ao seu “oi”, que disse assim que chegou. Fui logo perguntando: “Quem são esses caras? O que fizeram para eles?” Luzinete me olha, sem nada responder. Percebo um ar de triunfo e de medo, nos olhos da menina. Triunfo por ter enganado aqueles três malucos e medo por estar diante de mim, que ela envolvera numa história que eu ainda não sabia qual era, mas que estava tendo um desenrolar perigoso tanto para eles, como para mim. Luzinete me olhou, agora com ar de seriedade e pediu: “Podemos sair daqui?”. Respondi que sim e deixamos a estação. Caminhamos por dois quarteirões até que encontrei um orelhão ao lado de um bar. Telefonei para o jornal, dizendo que estava impossibilitado de trabalhar. Entramos no bar e, sério, intimei Luzinete: “Comece a falar”. O RELATO Luzinete olha para céu. A noite começa a cair. Ela sorri para mim, respira fundo, percebo que seus olhos se enchem de lágrima, faz um esforço para não chorar. Depois de tomar um gole de refrigerante que eu pedira ao dono do bar, Luzinete começa a falar. Sua voz é pausada e percebo que ela não tem pressa. Sua história é longa. Sua vida começa a ser mostrada para alguém e ela sente que seu mundo está sendo desvendado, seu passado revelado. Transcorria o ano de 1989 quando sua mãe, Tereza, se dirige à delegacia. São dez horas da manhã de um dia de abril. O vento é ainda suave, de início de outono. As folhas caem lentamente das árvores, como que procurando um lugar no solo para repousar. Na delegacia é recebida por um investigador e ela afirma que tem uma denúncia a fazer. E é exatamente contra o homem que ela pensou, um dia, amar. Foi com ele que ela teve duas filhas, Eugênia, de doze anos e Luzinete, com dez. O investigador não faz anotações. Ao fundo, numa outra mesa, o delegado só ouve. Tereza diz que está casada há 14 anos com Afrânio. No início, os dois trabalhavam no interior de Minhas Gerais, mais precisamente em Governador Valadares. Ela era professora primária e ele, servente, na mesma escola. Foi lá que se conheceram, se apaixonaram e, seis meses depois, estavam casados. Pouco mais de um ano depois nasceu Eugênia. Tereza virou diretora da escola e o padrão de vida também melhorou. Afrânio conseguiu se formar no segundo grau e acabou vencendo concurso para professor. O investigador e o delegado começaram a pressionar a moça, pois até agora ela esta ali, apenas relatando sua vida e eles queriam fatos, queriam saber o que estava acontecendo. Tereza respirou fundo e entrou na parte mais pesada da história. Depois do nascimento de Luzinete, Afrânio descobriu que gostava de cachaça. Fez amizade com dois pedreiros que reformavam sua casa e passou a beber com os mesmos. Foi assim, durante um bom tempo. E Afrânio perdeu o emprego, por causa das faltas constantes. Se revoltou contra Tereza pois achava que ela, como diretora, poderia interferir junto ao delegado de ensino e impedir que fosse demitido. E Afrânio passou a beber o dia todo. Seis anos depois, Afrânio se revelou um monstro: desprezou Tereza e começou a manter relações com as filhas. As duas. Chegava em casa de manhã, sempre bêbado. Tereza sentiu vergonha e decidiu se demitir da escola e mudar de cidade. Deixaram Minas e se mudaram para Francisco Morato, no interior de São Paulo. O aluguel da casa era pequeno e, sem chance de conseguir emprego como professora, virou faxineira. Delegado e escrivão começaram a prestar mais atenção à história de Tereza. E ela foi contando, apesar de demonstrar vergonha. Foi assim durante mais de três anos: ele agarrava as meninas, as duas de uma só vez, e as levava para sua cama, enquanto Tereza passava a manhã trabalhando. Quando chegava em casa para o almoço, Tereza encontrava tudo revirado: as meninas chorando, e o homem, bêbado, jogado na cama, completamente nu. Era preciso tomar uma atitude e Tereza a estava tomando agora. Queria que a polícia colocasse esse monstro na cadeia. Delegado e investigador decidem que o resto da história ficaria para depois. Agora, o importante era prender o monstro. Perguntam onde podem encontrá-lo e Tereza mostra um bar próximo à delegacia. É lá que está Afrânio. O monstro! A prisão é feita sem contestação. Afrânio, apesar de ser onze horas da manhã já está bêbado e só era forte diante da mulher, a quem sempre gostou de agredir... Com os policiais não esboçou reação. O problema maior é que o bar estava cheio e, entre os fregueses estava um funcionário de um jornal que, imediatamente, acompanhou a polícia até a delegacia para ouvir a história. Um mês após a prisão de Afrânio, o mesmo jornal que publicou o escândalo, divulgou notícia de que ele havia sido assassinado no presídio. Tereza pegou as malas e se mandou para Minas, disposta a recomeçar a vida, de preferência, voltando a lecionar. Eugênia seguiu para Recife, onde morava sua tia, Magali, irmã de Afrânio, e que trabalhava num prostíbulo. Luzinete preferiu continuar na cidade. O fim da família fez a menina buscar companhia. E com ela, passou a morar uma prima de dezoito anos, Fátima. Seu sonho sempre fora morar em São Paulo. Fátima conseguiu emprego na Capital, próximo à estação ferroviária de Pirituba e viajava diariamente para Francisco Morato. A casa de Luzinete e Fátima já não era a mesma que abrigara o monstro. Mudaram para uma menor: um quarto, cozinha e banheiro. Apesar de viajar e deixar Luzinete em casa, Fátima coordenava a moradia. Saía de casa todos os dias às 7 horas e só retornava por volta das 18, trabalhando como doméstica. Luzinete ajeitava os dois cômodos e preparava a comida. Foi nesse vai-e-vem, que Fátima descobriu os marreteiros, que ganhavam a vida dentro do subúrbio, vendendo bebidas, balas, bolachas, doces e salgados para os passageiros. E não só fez a descoberta, como propôs “sociedade” para Luzinete. As duas trabalhariam juntas nisso. E Luzinete seria a responsável pela maior parte dos negócios, já que, no início, Fátima não pretendia abandonar o emprego. No pagamento de Fátima, as duas fizeram a primeira compra, dando a “largada” para a sociedade. Começaram vendendo bolacha. Fátima, como doméstica, ganhava apenas um salário mínimo, mas esperavam dobrar este valor, realizando vendas no trem. O aluguel do barraco era exatamente metade do salário de Fátima, sobrando pouco para comida e roupa. Luzinete começava o serviço, no horário em que Fátima saia para trabalhar e encerrava no final da tarde, quando esta voltava do serviço. Em casa, à noite, faziam as contas do que lhes rendera o dia. ///////// Eu percebia a frieza com que a menina relatava os fatos. Sentia que sua experiência de vida era grande e que, pelo que passara, já nada tinha a perder. Luzinete, sentada, ali, na minha frente, era diferente da moça que vendia produtos no trem. Era diferente da garota de programa. Gerinho se aproximou e pediu para ir embora. Já estava ficando tarde e ele tinha sono. Antes de deixar o bar, Luzinete chamou sua atenção: “cuidado com eles”... Ficamos os dois no bar. Luzinete contando sua vida, e eu ouvindo os detalhes. A calma, porém, acabou logo. Gerinho voltou correndo. “Eles estão na estação. Consegui fugir sem ser visto”. “Tem certeza?”, perguntei, levantando-me e me dirigindo à porta do bar. Gelei! Os três desciam a rua a caminho do bar. Luzinete correu ao balcão e conversou alguma coisa com o dono do bar. Ele apontou para os fundos e foi por onde saímos correndo. A corrida durou dois quarteirões. Um táxi apareceu e foi com ele que rumamos para a estação Pirituba. Luzinete me olhava preocupada, enquanto Gerinho se virava para trás para ver se alguém estava nos seguindo. A cada momento, eu me sentia mais cúmplice de tudo, apesar de Luzinete não ter, ainda, me contado a história dos dólares. Pirituba não demorou a chegar. Passava das 22 horas e eu sabia que, em poucos minutos haveria um trem para Francisco Morato. Paguei o táxi e as passagens, apesar de os dois alegarem que poderiam pular o muro e viajar de graça. Eu achava isso arriscado. Esperamos mais de vinte minutos, quando o trem chegou à plataforma. Gerinho estava impaciente e Luzinete não abriu mais a boca desde que chegamos à estação. Eu sentia que perdera tempo naquela noite, além do dia de serviço. Não queria que os três perseguidores suspeitassem de mim. Afinal, eles já haviam me flagrado duas vezes junto deles. Assim, quando o trem abriu a porta, me afastei dos dois, avisando que tomaria outro trem. Os dois entraram num dos vagões e já cruzaram com alguns marreteiros. Percebi que estavam “em casa” e esperei o trem partir. As portas se fecharam e acompanhei os dois se misturando com outras pessoas no vagão. O trem era da antiga CBTU o que significava que não havia contato entre os vagões - esse contato só existe nos trens mais antigos, os da Santos-Jundiaí - e, quando o trem se pôs em movimento, senti um calafrio na espinha: dois vagões atrás de Luzinete e Gerinho estava um dos três rapazes que minutos antes nos procurava. Sai como um doido da estação e tomei outro táxi. Desta vez pedi que a corrida fosse até Jaraguá. Cheguei à estação um minutos antes do trem e me postei na plataforma, esperando pelo segundo vagão, que era onde Gerinho e Luzinete haviam entrado. As portas se abriram e eu vi, do segundo vagão sair o perseguidor e entrar no primeiro. Luzinete e Gerinho não estavam em nenhum dos dois. Corri para o terceiro e nada! Desci do trem preocupado, sem saber o que fazer, indo para os últimos vagões, sempre atento no interior do trem. As portas se fecharam e vi o trem partir. Quando o mesmo deixou a plataforma, respirei aliviado. Luzinete e Gerinho estavam no meio da linha, e se dirigiam para a plataforma. Já ao meu lado, os dois relataram a aventura vivida junto ao perseguidor. Eles disseram que, quando o trem chegou em Vila Clarice, os dois desceram, com a intenção de mudar de vagão, quando deram de cara com um dos perseguidores. Ele entrou no vagão, mas não viu a dupla, passando em seguida para outro vagão. Gerinho e Luzinete resolveram, então, subir no topo do trem. Quando o trem chegou no Jaraguá, desceram pelo lado da linha, exatamente como Luzinete fizera na Água Branca. A intenção dos dois era me esperar. - Ainda tenho muita história para lhe contar - disse Luzinete, olhando para mim. Sentamos num dos bancos da estação. A espera seria de uns quarenta minutos - se o trem não atrasasse. Gerinho não saiu do lado da amiga em nenhum momento, durante o relato da história. A garota continuou a contar sua vida, até que falou em Franz Weldhort, um alemão que morrera, exatamente quinze dias antes de Luzinete me entregar os dólares. A garota ria de mim, ao contar como encontrara os dólares. Ela já conhecia o alemão há alguns anos. Foi ele que a iniciara na vida das drogas e a transformara numa garota de programa. Uma tarde, quando deixava a estação da Luz para comprar mercadorias, Luzinete cruzou com Weldhorf na avenida Cásper Líbero. Era um final de tarde do verão de 93 e começava a chover, obrigando os dois a se esconderem dentro de uma casa comercial que Luzinete não lembrava mais o nome. Luzinete se engraçou com o velhote e achou que ele poderia ser um meio de ganhar dinheiro. Estava cansada das viagens diárias de trem, do movimento “maluco” das pessoas, do dinheiro perdido com os policiais ferroviários tomando sua mercadoria e da prima que não mais se importara com ela, pois arrumara um namorado em São Paulo, onde passava a maior parte do tempo. Franz Weldhorf chegara ao Brasil há três anos e tinha, segundo Luzinete, dificuldade para falar nossa língua. Aceitou um convite para um lanche, num bar ao lado do local onde estavam e, dali para um dos hotéis “foi só atravessar a rua”, disse ela rindo. A chuva deixou os dois completamente molhados, pois apesar de ser apenas “atravessar a rua”, a força da água era grande e as ruas estavam alagadas. Weldhorf se registrou na portaria e ambos subiram para um dos quartos. “Era no terceiro andar e o número do mesmo era 35”, afirmou Luzinete, para completar em seguida: “foi uma espécie de código: para nós, tudo giraria em torno do 35 e sempre nos encontrávamos num dos hotéis no quarto que tinha este número. Era fácil: ele chegava no hotel antes, fazia a reserva, pedindo o quarto 35 e esperava que eu chegasse. Eu nem parava na portaria para tirar informações. Já subia para o quarto. Aquela tarde foi uma tragédia. Weldhorf entrou no quarto blasfemando, por estar todo molhado. Tirou toda a roupa, não se importando com Luzinete e seus 15 anos. Ela ficou assustada, se lembrando de Afrânio. Não deu tempo nem para Weldhorf dizer uma palavra: virou as costas e saiu correndo do quarto para a rua, preferindo tomar chuva do que manter um encontro amoroso com um homem de sessenta anos. Passava das oito da noite, quando a chuva parou e Luzinete rumou para a estação da Luz. A roupa molhada começou a ser uma preocupação para ela, pois o risco de um resfriado era grande. O trem chegou logo e a viagem foi curta: Luzinete teve de visitar a prima na casa do namorado em Pirituba. Por causa das chuvas fortes, a viagem seria, naquela noite, somente até Pirituba, pois o rio, em Franco da Rocha transbordara, impedindo o tráfego de trens. Ela percebeu que Fátima não apreciou a visita, mas permitiu que Luzinete trocasse de roupa. Com roupa seca, emprestada pela prima, Luzinete voltou para a estacão da Luz. Não tinha como ir para Francisco Morato e a saída foi encarar Weldhorf no quarto 35 do hotel. O alemão sorriu ao vê-la chegar. Ela garantiu que estava ali, por causa da chuva e Weldhorf decidiu lhe pagar um lanche. Depois de se alimentar, o velhote a mandou para a cama, garantindo que dormiria ali, sentado. Quando o sol entrou pela janela, pouco antes das seis da manhã, Luzinete abriu os olhos assustada. Estava sozinha no quarto, pois o alemão tinha ido embora. Dentro de seu sapato, Luzinete encontrou uma nota de cem dólares deixada pelo alemão. As chuvas daquele verão e as compras de mercadorias, cada vez mais aproximavam Luzinete de Weldhorf. Uma semana após o primeiro encontro, os dois voltaram a se ver. Ela agradeceu o dinheiro e o alemão sorriu, sem nada dizer. E foi assim no dia seguinte e no outro e no outro. Até que Luzinete aceitou novo convite do alemão um encontro num hotel perto da Luz. A noite estava apenas começando e Luzinete teve o primeiro choque, quando Weldhorf revelou que era traficante de drogas e se ela não gostaria de vender as mesmas no trem. Ela simplesmente se negou a fazer isso, alegando que ganhava bem, vendendo chocolate, bolacha ou bebidas. O homem parecia compreender a situação. Nunca forçou Luzinete a nada. O encontro serviu apenas para uma conversa sobre drogas. A menina, mais uma vez, teve vontade de correr para a rua, mas se conteve (“foi sempre assim, entre eu e ele, sempre uma corrida para a rua. Até o fim”, relatava Luzinete). Depois de uma semana de bate-papo, Luzinete decidiu aceitar um cigarro de maconha (“só para sentir o gostinho”). Enquanto ela se engasgava (“nunca tinha colocado um cigarro na boca”), percebia que o alemão sorria, satisfeito. Ela confessa que ficou grogue, mas não perdeu o controle da situação. Sentiu um alívio no corpo, uma sensação de estar flutuando e uma vontade de correr, pular, dançar... Não deu mais do que cinco tragadas, mas a cena foi se repetindo no outro, no outro e no outro encontro. Weldhorf, toda vez que se encontrava com ela, além de lhe pagar um lanche lhe dava vinte dólares. O dinheiro começou a fazer cócegas nas mãos da menina e, um mês depois, fez a primeira tentativa de vender droga no trem. Levou dois papelotes de cocaína e dois cigarros de maconha. Queria sentir a reação das pessoas. Conversou com um marreteiro amigo. O amigo se interessou (“era um viciado”). E, ao invés de vender no trem, acabou vendendo para ele. À noite, negociou o ganho com o alemão. Ele não quis o dinheiro (“quero apenas você, dizia o velho, olhando para mim”). Luzinete não queria sexo com o velho, até que acabou lhe contando o porque. Por incrível que pareça, ele aceitou as explicações dela. Acabaram sendo sócios nas vendas das drogas. ///////// Luzinete, por causa do calor, trabalhava com bebidas naquela época do ano. Uma caixa de isopor cheia de latas de cerveja e refrigerante e nas costas uma mochila com bolacha. Amarrada na cintura ela levava uma carteira onde colocava o dinheiro que recebia dos fregueses e, abrindo um ziper, mantinha escondida a droga que lhe rendia muito mais que as bebidas vendidas. E o inevitável aconteceu: a briga com a prima. Fátima se sentiu roubada pela “sócia” e resolveu se mudar de Morato, indo morar na casa dos patrões. Morar sozinha em Morato acabou levando Luzinete ao desespero. Ela não sabia como ia ser. Foi então que se associou a Gerinho, um garoto de dez anos, mas que se mostrava muito esperto diante dos outros marreteiros. O convite foi feito e o garoto não pensou duas vezes: não só aceitou a sociedade como propôs morar na mesma casa com ela. Além de viver vagando pelas estações, Gerinho achou que seria mais útil junto à Luzinete: “você precisa de um homem para cuidar de você”, afirmou ele. O riso ecoou pela plataforma da estação e, já naquela noite, os dois estavam juntos. Gerinho olhou para Luzinete assim que chegaram à casa da garota e garantiu que a sociedade deles se limitaria à venda de mercadorias nos trens. Os outros negócios da garota, ele preferia ignorar. Os outros negócios, segundo ele, eram as drogas. Apesar de muitas vezes ter cheirado cola de sapateiro, Gerinho garantiu que não era viciado e que não queria nem conversar com ela sobre o assunto (“e se um dia começar a aparecer homem em sua vida, não quero um tostão, tá?”, garantiu o menino, diante de um novo riso de Luzinete, pois ela achava que, se os homens eram para ela, o que ele tinha a ver com os “lucros” que ela obteria com isso?). Depois da primeira semana de muito trabalho e bons lucros, Gerinho teve uma idéia, que acabou sendo aceita por Luzinete: roubar os passageiros. Nada de arrastão, pois não tinham jeito para isso. Seria um “serviço limpo”, riam eles. O menino tomou fôlego, e fez o plano: Luzinete venderia os produtos, ficando atenta ao freguês, para saber de onde ele tirava o dinheiro para pagar. Se é pago em passe ou apenas com o dinheiro certo, o ideal é ignorar, mas se há um volume maior de dinheiro, o negócio era informar Gerinho de onde a grana saía. Os melhores dias eram 5 e 20 de cada mês, quando os passageiros recebiam o pagamento. E é comum ver passageiro bêbado nos trens, principalmente nesses dias. Luzinete estava sempre atenta aos fregueses. Até já conhecia alguns que acabaram sendo roubados por eles várias vezes. Ela via em que bolso o dinheiro era colocado e avisava Gerinho, que ficava passeando pelo vagão como quem não quer nada. O menino ficava de olho na pessoa, até que a mesma se levantava para descer. Se aproximava, aproveitando sempre a aglomeração junto à porta. O passageiro, geralmente embriagado, conversava com alguém, com uma mochila na mão, deixando os bolsos livres. No empurra-empurra para descer, sempre provocado por Gerinho, a mão do garoto entrava no bolso e retirava, rapidamente, o dinheiro. Ele corria para outro vagão, enquanto o passageiro deixava a estação. /////////////// Os faróis do trem iluminaram a estação e cada qual rumou para sua casa. Luzinete e Gerinho me garantiram que a história iria continuar num outro dia. Na hora de descerem do trem, em Francisco Morato, arrisquei: - Posso trazer sua mochila amanhã? - Não! - gritou Luzinete. Percebi que ela ficou corada, assustada com minha pergunta. Apesar de os dólares serem dela, a impressão que ficou no ar foi de que ela queria distância de tudo aquilo. Antes de descer, ela olhou para mim, com ar de preocupação: - Desculpe te envolver nessa confusão... - Desceu, seguindo lentamente para a porta da saída. Gerinho ia atrás, como um guarda-costa. ////////// Cheguei à estação da Luz correndo. O trem já estava na plataforma. Deixei o dinheiro no guichê e desci correndo as escadas. O chefe da estação deu o sinal, liberando o trem e o maquinista soou a campainha, fechando as portas. Apesar do atraso, consegui correr até o primeiro vagão e ainda encontrei um lugar para sentar. A viagem seguia tranquila. O trem estava quase vazio, pois não haviam estudantes. A maioria era de trabalhadores, muitos embriagados. Aliás, esses trabalhadores dificilmente não se embriagavam nas viagens de volta. Para ajudar, o dia era de pagamento em muitas empresas e percebia-se o bolso recheado de alguns trabalhadores que não faziam questão de esconder o dinheiro. Pouco depois de o trem deixar a estação de Jaraguá, rumo a Perus, a viagem se complicou. Eu estava com o olhar fixo no teto do vagão, quando percebi um impacto e um solavanco. A primeira impressão que tive foi de que o trem havia descarrilhado. Apesar de nunca ter sentido a sensação de um descarrilhamento, imaginei que fosse isso. Antes de o trem parar, a confusão começou. Os passageiros, colocados mais na frente do vagão correram imediatamente para trás, procurando segurança. Outros que estavam correndo, empurravam quem estava sentado, tentando levantar o banco para pressionar a válvula que abre a porta. “Calma, calma!”, gritava alguém, tentando conter o desespero dos passageiros. Levantei a pasta que carregava à altura do rosto, tentando me proteger. O trem parou. Houve um silêncio rápido, seguido de um suspiro geral. Os passageiros se entreolharam, como que perguntando um ao outro o que teria acontecido. Agora, as pessoas se dirigiam à frente do trem para checar com o maquinista o que havia ocorrido. Três cavalos haviam sido atropelados e mortos pela composição. Os ossos de um dos animais acabou danificando o compressor de ar, impedindo que as portas se abrissem. O ambiente se acalmou rapidamente e acabou virando piada. Depois de quase duas horas de espera, apareceu uma máquina para nos rebocar e o fez até a estação seguinte, de Perus. “Este trem não terá prosseguimento”, anunciou o microfone da estação e foi um desespero geral. É que na outra plataforma estava estacionando o último trem, mas, por causa do problema de ar, as portas não se abriram. Alguns passageiros mais afoitos tentavam sair pela janela. Com muito custo, eu e um outro passageiro conseguimos abrir uma das portas, por onde saíram as pessoas que estavam neste vagão. E todo mundo correu para o outro lado da linha. “Cuidado como trem parando”, gritava um, “olha o trem”, advertia outro. E as pessoas pulavam da plataforma para os trilhos, correndo o risco de se machucarem. Subi a plataforma e entrei no primeiro vagão. Sentei-me e, depois de tomar fôlego, abri os olhos. Sentada bem na minha frente, sobre uma caixa de isopor vazia, estava Luzinete. Sorriu-me satisfeita, ao me ver e se aproximou: “desculpe escolher o senhor para tomar conta daquilo, mas foi a única pessoa que me inspirou confiança.” No instante seguinte ela empalideceu. Olhei para o lado, procurando alguma coisa, quando vi o rapaz que espetara Gerinho com a faca, entrando no vagão. Ela se encolheu num canto, pois o trem já se aproximava de Caieiras. As janelas deste vagão eram menores e Luzinete não quis se arriscar sair por elas. O rapaz vinha se aproximando, lentamente, olhando as pessoas no rosto. O trem entrou na estação e reduziu a velocidade. Luzinete, antes de se levantar, segurou a alça da caixa com a mão direita e esperou o rapaz se aproximar mais. Foi aí que aconteceu: Ela levantou-se rapidamente, puxou a caixa para a frente, segurando-a com as duas mãos e se atirou sobre o rapaz que não esperava por isso, pois não a tinha visto. Desequilibrou-se e caiu bem em cima de mim, e Luzinete se aproveitou para sair correndo pela plataforma, aproveitando que as portas se abriram. Com as duas mãos o empurrei para o lado: “seu bêbado”, gritei. Ele caiu no chão e as portas se fecharam. Consegui me levantar e corri até a porta, segurando-a para ver onde Luzinete havia se enfiado. Ela estava dois vagões atrás. O trem acelerou e o rapaz sentou-se, meio sem jeito no local onde eu estava antes da confusão. Ali, ele permaneceu até Francisco Morato, quando o trem esvaziou. Fiquei atento para ver o que aconteceria. Fiquei sozinho no vagão e percebi o rapaz parado na plataforma. Respirei aliviado, quando vi, já fora da estação, Luzinete e sua caixa de isopor. Quando o trem partiu, acenei para ela. O rapaz continuou na plataforma. /////////// Mais uma noite cansativa e a viagem parecia não ter fim. Logo que o trem deixou a estação da Barra Funda ouvi um “hic” bem alto próximo a mim. Não foi difícil perceber, bem na minha frente um bêbado. Calça jeans e camisa aberta, mostrando um peito peludo, o bêbado não se esforçava para controlar o soluço. E a cada “hic”, ele dava uma cusparada no chão, esfregando o pé em cima. Isso foi se tornando nojento e comecei a pressentir a hora em que o bêbado fosse vomitar. Ou até mesmo eu, pois tenho estômago fraco. Continuei minha leitura, mas observando a reação do bêbado. Logo após deixar a estação de Vila Clarice, o bêbado se pôs em pé e chegou próximo à porta. “Preciso mijar”, disse ele a um passageiro que não lhe deu atenção. No Jaraguá, ele desceu, meio cambaleante, e se aproximou das grades que cercam a estação. Quando o maquinista soou a campanhia, ele voltou correndo, fechando o ziper da calça e entrou no trem. Na estação Perus, ele voltou a descer, mas antes de o maquinista soar a campainha para fechar a porta, ouviu-se um barulho seco, uma batida forte. Estava, como de costume, no primeiro vagão e não foi difícil ouvir um passageiro gritar: “Maquinista, não sai não, que um passageiro caiu no vão entre o trem e a plataforma”. A primeira impressão que tive foi de que ficaríamos ali, pelo menos, uma hora. Pensei comigo mesmo: o rapaz quebrou a cabeça, vai ser preciso esperar o socorro chegar, fazer-se uma ocorrência e só depois partir. Lembrei-me, imediatamente, do dia em que o trem atropelou os cavalos e que perdemos duas horas com aquela confusão. Quando afastei os olhos do livro e olhei em direção à porta, vi o bêbado entrando, como se nada tivesse acontecido. Não ouvi o “hic” e, imediatamente, me lembrei de minha mãe que dizia que, para se passar o soluço era necessário que a pessoa levasse um susto. Foi isso o que aconteceu. Até a bebedeira passou... Apesar de tudo, minha preocupação estava com Luzinete. Sentia que os seguidores apertavam o cerco e, a qualquer momento, a situação poderia se complicar. Estava cada vez mais envolvido em tudo isso e não tinha idéia do que estava ocorrendo. Foi nessa noite, assim que o bêbado desceu em Caieiras, que Luzinete entrou no vagão. Haviam poucas pessoas no trem, e ela parou bem na minha frente, me oferecendo cerveja. Rejeitei, mas ela vez questão de me dar uma lata (“oferta da casa”, disse ela, sorrindo). Sentou-se ao meu lado e sugeriu que eu descesse em Francisco Morato, para que pudessemos completar a conversa que - ela voltou a sorrir - “estava virando novela”. Ela afastou-se mais uma vez e tomou o rumo de outro vagão. Não demorou muito para o trem chegar a Francisco Morato. Desci e nem precisei procurar: Luzinete vinha em minha direção. Gerinho vinha logo atrás, garantindo que tinha passado por todos os vagões e que não havia ninguém suspeito, o que significava que poderíamos conversar, sem sermos ameaçados. Luzinete sentou-se, olhou friamente em meus olhos e começou a relatar as histórias envolvendo os ataques aos passageiros. Numa sexta-feira, dia 5 - a data ela lembrava bem - roubaram o dinheiro de um homem que comprara Coca-Cola e se assustaram: junto com o dinheiro R$ 140,00 - havia o holerite que marcava o valor do seu salário - R$ 350,00 - e uma receita médica. Gerinho achou que o dinheiro era para comprar o remédio. Luzinete lembrou, então, que não era a primeira vez que viam aquele homem no trem, o que não seria difícil reconhecê-lo num outro dia. Na manhã seguinte, Gerinho foi à farmácia com a receita e comprou os remédios. Custaram R$ 95,00 e isso assustou o garoto. Na segunda-feira, ele procurou por todo o trem o homem roubado. Não foi difícil achá-lo. Chovia naquela noite e Gerinho aguardou a hora de o homem descer. Repetiu os movimentos do dia do roubo, mas desta vez conseguiu colocar no bolso da capa de chuva do homem o pacote com os remédios, o dinheiro roubado embrulhado junto e mais R$ 250,00 para “compensar” o roubo. Apesar de a dupla ter desistido de roubar passageiros, os furtos continuam existindo, principalmente na estação da Luz, a mais perigosa. As principais suspeitas são as prostitutas, que correm atrás dos homens. Nos dias de pagamento, elas trabalham em dupla, pois o volume de dinheiro é grande. As moças seduzem os homens, levam-no para um dos hotéis da região, onde os embriagam e roubam tudo o que têm. Às vezes, o roubo acontece na própria estação. Se o homem não atende ao convite, é cercado pelas mulheres, agredido e acaba perdendo a carteira. ///////////////////// Gerinho acabara de me fazer um alerta: - Cuidado nas estações. Se você senta próximo à janela e a mesma está aberta, pode acontecer de alguém surgir na plataforma, se enfiar pela janela para lhe roubar. Uma vez vi um cara roubar a carteira de um homem. A carteira estava no bolso da camisa. O cara se enfiou pela janela, e foi direto com a mão no bolso. Além de ficar sem a carteira, o homem teve o bolso rasgado. Outra vez um velho ficou sem o chapéu. Eles esperam a porta se fechar e o trem se colocar em movimento para agir. Não foi possível estender mais a conversa. O último trem apareceu e o fim da história ficou para o dia seguinte. Luzinete garantiu que me contaria, finalmente, a história dos dólares. O trem chegou e deixei os dois na plataforma. Ainda não tinha certeza de como os dólares apareceram nas mãos da menina. No dia seguinte, encontro os dois na plataforma, em Jundiaí. Estavam anciosos para concluir o relato. A amizade e os negócios com o alemão iam bem, mas o homem estava cansado de ir preso e queria paz. Tinha conseguido um bom dinheiro e achava que chegara a hora de voltar para casa e se “aposentar”. Luzinete concordou, pois a concorrência começara a crescer no trem, já que outros marreteiros começaram a trabalhar com drogas. Foi em maio de 1995 que Weldhorf anunciou que, em uma semana iria embora do Brasil. Já tinha conseguido passaporte falso e levaria parte do dinheiro no meio das roupas, na mala, em pequenas sacolas, amarradas na cintura e um companheiro, que trabalhava com ele, levaria o restante. Viajariam juntos, ambos com passaportes falsos. Orlindo de Oliveira, que Luzinete conhecia como Lindo, era o companheiro do alemão. No dia 8, à noite, aconteceria o embarque. Luzinete passaria o dia com ele, arrumando as malas e ajeitando o dinheiro. Weldhorf, na manhã dia 7, fechou a conta no hotel, no centro da cidade e alugou um quarto em outro hotel - o número 35 - próximo à estação da Luz. Por volta das 17 horas do dia seguinte, Orlindo chegaria ao hotel, esconderia os dólares na cintura, igualzinho ao alemão, e o restante iria no meio das roupas, dentro das malas. O trabalho de Luzinete seria separar o dinheiro em pacotes e colocá-los nas sacolinhas. Para evitar problemas com a Polícia Federal, Weldhorf embarcaria com o passaporte falso que estava com Orlindo. O seu passaporte normal, ele colocara junto com uma passagem comprada para a Alemanha para o dia 8, às 22,25 horas. Orlindo havia comprado passagens para Paris, em vôo das 20 horas. Tinham certeza de que a Polícia Federal estava driblada. Luzinete conhecia todos esses detalhes. Sabia tudo sobre o alemão: onde morava, de quem comprava as drogas para repassá-las à sua equipe, e sabia, inclusive, que era vista com inveja por Orlindo. Estava aliviada em saber que o mesmo iria embora do Brasil. /////// Orlindo era um homem de 40 anos, advogado formado e frustrado, que não conseguiu passar no exame da Ordem dos Advogados. Desistiu da carreira e foi ser vendedor de livros. Visitava indústrias, escritórios, fazia amizades, recebia dos funcionários no dia do pagamento, parcelando as contas. Com isso, foi descobrindo os dias exatos em que as empresas pagavam os trabalhadores. Um dia, com a ajuda de mais dois rapazes, assaltou o posto bancário de uma empresa, levando perto de duzentos mil dólares. Todo mundo ficou assustado, quando a notícia saiu nos jornais. Ninguém poderia imaginar que Orlindo, pudesse ser um grande ladrão. Não demorou muito, porém, para ir preso e foi na cadeia que conheceu o alemão. Era a segunda vez que Weldhorf ia preso e estava disposto a nunca mais passar pela cadeia. Orlindo, que já era chamado de Lindo pelos presidiários, arquitetou um plano de fuga. O alemão não aceitou. Preferiu passar mais uns dias na cadeia. Sabia que seus advogados trabalhariam para tirá-lo dali. E foi o que aconteceu, enquanto a polícia estava no encalço de Orlindo, Weldhorf conseguia um habeas corpus e iria esperar seu julgamento em liberdade. Ficou três meses livre, quando soube, pelos advogados, que seria julgado no final de maio. Nesse período já tinha feito grandes negócios e decidiu marcar a data da fuga. Sabia que se viajasse com seu nome verdadeiro, teria problemas na hora do embarque, daí a idéia do passaporte falso e de passagens em horários diferentes. /////// Luzinete deveria chegar ao apartamento de Weldorhf às 9 horas da manhã, para ajudá-lo a separar o dinheiro. Orlindo viria à noite. Os detalhes foram combinados no dia anterior. Assim que tudo ficou acertado, Lindo deixou o hotel, onde Luzinete permaneceu junto com o alemão. Ela revelou, finalmente, sua preocupação e o alemão se assustou. Achou que Orlindo não lhe daria uma rasteira, mas se preveniu. Abriu uma mala enorme e Luzinete se assustou com o grande volume de dinheiro. De dentro do armário, retirou uma pasta tipo 007, onde, junto com Luzinete, colocou o dinheiro. Na mala grande, de onde retirara o dinheiro, colocou, por cima da roupa, algumas notas. Luzinete o ajudou a recortar jornal, do tamanho dos dólares. A idéia era, se alguma coisa saísse errado, não perder o dinheiro. Com a mala e a pasta prontas, Luzinete se preparou para ir embora. O alemão a chamou, então, e a ajudou a subir numa cadeira, onde a pasta com o dinheiro foi colocada no forro do quarto. Ela só seria retirada no dia seguinte, quando Luzinete chegasse. E quando ela chegou, no outro dia, e viu o corpo do alemão, fugiu desesperadamente. Foi na rua que se lembrou onde o dinheiro estava escondi. Daí ter voltado para apanhá-lo. Luzinete respirou fundo, sorriu para mim, um riso de satisfação, empurrou o cabelo para trás e completou: - É tudo! Agora você já conhece minha história e a da mochila. - Não é não! – insisti. Se você apanhou os dólares, enganando o inimigo, por que não foi sumiu? Eles estão seguindo você e podem apanhá-la e até matá-la. - Me matar é que não vão. Eles só farão isso, se conseguirem o dinheiro que está com você. E acho que não está disposto a entregar para eles, está? Luzinete sorria o tempo todo, um riso de satisfação e de alegria. - Por que, então, você continua por aqui? - Eles mataram meu amigo. Quero vingança! O sorriso, de repente, desapareceu. Seus olhos verdes se encheram de ódio. Eu conseguia ver isso em Luzinete. Já tinha visto quando me contou sobre a morte do alemão. O trem apareceu. Era hora de ir embora. Cada um foi para um lado. //////////////////////////////////////////////// Cheguei ao jornal com a data da morte do alemão e procurei Robson, um amigo que fazia polícia para me ajudar a localizar uma reportagem sobre o assunto. Não foi difícil. No dia seguinte ao crime, o jornal publicara uma reportagem do alemão morto. O texto dizia que o mesmo já era conhecida da polícia, pois era traficante de drogas e fora detido algumas vezes. O crime, segundo a polícia, seria uma queima de arquivo ou briga entre quadrilhas. Apesar de Franz Weldhorf ser conhecido de Luzinete, resolvi pedir a Robson que fizesse uma investigação particular, tentando descobrir quem era, exatamente, este alemão. O texto não tinha mais informações e Robson se desculpou, alegando que não fora ele o repórter, mas que trabalharia no caso, a meu pedido. Lembrei que ela me dissera que os dólares eram de drogas e, portanto, era dinheiro “sujo” . E eu queria me livrar logo deles, até porque estava me sentido envolvido até a cabeça em toda esta história. Luzinete, por outro lado, me parecia preocupada apenas com a vingança. Era só isso que eu via em seus olhos e me deixava preocupado. Estava me envolvendo e, se ocorresse um crime, alguém diria à Polícia que eu já foram visto com ela e poderia ser suspeito de alguma coisa. A partir daquela data, comecei a olhar mais atentamente para as páginas policiais, procurando ver se apareciam novidades. Dois dias depois, Robson me trouxe uma informação. Um mês depois da morte de Weldhorf, a Polícia havia prendido um traficante, conhecido por Perninha, que confessara o crime. Perninha, cujo nome real era Pedro Andrade da Silva, havia dito que matara o alemão, juntamente com um amigo, que estava foragido, de nome Orlindo de Oliveira. Mataram o alemão e fugiram, pois ouviram barulho no corredor. Na verdade, Perninha não quis confessar que fora enganado pelo alemão e por Luzinete. Comecei a perceber, então, que já sabia mais do que a Polícia e tremi, ao lembrar que muitas pessoas já haviam morrido neste mundo todo, “por saberem demais”. Percebi, então, que Orlindo mais alguns amigos, tentavam recuperar os dólares e viviam seguindo Luzinete e já sabiam, inclusive, que Gerinho estava envolvido na trama. O importante era eu me manter afastado, como quem não tem nada a ver com a história e esperar. Já dissera a Luzinete que ela deveria desaparecer, pegar o dinheiro e sumir. Ela concordara, mas me garantiu que só faria isso, quando Lindo estivesse fora de circulação. O inverno estava chegando ao fim e eu queria um pouco de sossego. Luzinete estava voltava às bebidas e às bolachas. /////////////////////////////////////////////////////////////// Era véspera do feriado de sete de setembro. Era quarta-feira, ainda, e muita gente já havia emendado o final de semana, o que presumia ser uma viagem tranquila, pois haviam poucas pessoas no trem. No vagão em que eu estava haviam três pessoas, além de mim. Uma auxiliar de enfermagem que morava em Jundiaí e trabalhava em Franco da Rocha, uma amiga sua que eu nunca vira e um homem aparentando uns trinta anos, trajando calça jeans, camiseta branca, tênis, um livro que não consegui ler o nome e barbudo. Uma barba bem feita, que a cada quinze minutos ele passava o pente, para mantê-la em ordem. Na verdade, só comecei a prestar atenção nele, quando tive a impressão de que o mesmo me observava. Tive esta impressão, pois quando cheguei na plataforma, em Jundiaí, ele estava em pé, ao lado da escada pela qual eu atravessara, de uma plataforma para outra, para tomar o trem com destino a São Paulo. Quando passei por ele, tive a impressão de que o mesmo folheou rapidamente o livro, como que procurando alguma anotação. Entrei num vagão - o terceiro – e ele também se ajeitou no mesmo. Foi em Franco da Rocha que o percebi melhor, pois o vagão se encheu e ele se pôs de pé, dando seu lugar a uma senhora. Dali onde estava, me parecia que ele tinha uma visão melhor minha. Desci na Luz. A temperatura amena era propícia para uma caminhada. Eu deixara a estação, seguia pela avenida Casper Líbero, atravessara o largo Santa Efigênia, rumo à avenida São João. Cortara a avenida, entrando no calçadão Dom José de Barros até a avenida Barão de Itapetininga. Gostava de me entreter com as vitrines das lojas. Cortava uma das galerias, até chegar à rua 7 de Abril, atravessava mais uma, chegando enfim ao jornal, no Anhangabau. Esta era minha rotina. Mudava se o tempo estivesse chuvoso ou frio e, no verão, evitava completamente. Preferia descer na estação Barra Funda, tomando o metrô até o Anhangabau. Nos meus trinta e cinco anos, um metro e setenta de altura e noventa quilos, andar demais no calor era trágico. Chegava no serviço com a camisa toda molhada de suór e isso me deixava indisposto. Apesar de atuar numa editoria tranquila – eu era editor de Internacional - sofria muito quando um assunto merecia destaque na primeira página. Quando cheguei na avenida Casper Líbero percebi que o homem de barba seguia meus passos a cinquenta metros de distância. Era fácil perceber que me seguia, pois se eu parava num semáforo e olhava para trás, ele disfarçava, olhando uma vitrine e se eu acelerasse o passo, o homem fazia o mesmo. Tive medo. Esta foi minha reação depois de andar três quarteirões e perceber que ele continuava me seguindo. Lembrei-me de sua fisionomia e tentei imaginá-lo sem barba, para ver se parecia com um dos três rapazes que seguiam Luzinete e Gerinho no trem. Era totalmente diferente. O medo, então, aumentou. Meu coração bateu mais forte, minhas pernas começaram a tremer e tive dificuldade de atravessar a avenida São João. Subi o calçadão da Dom José correndo, trombando com pessoas sem me voltar para pedir desculpas. Quando entrei na galeria da Barão para chegar à 7 de Abril, parei na porta e esperei por ele. Foram vinte minutos de espera, em vão. Respirei fundo e segui para o trabalho. Apesar da temperatura estar na casa dos vinte graus, eu transpirava muito. O suór escorria pelo rosto, molhando as lentes de meus óculos e atrapalhando a visão. Cheguei no jornal, subi os elevadores Sem prestar atenção nas pessoas. Quando Robson me cutucou por trás, dei um pulo. - Desculpe, te assustei? – indagou ele. Sorri, alegando que estava atrasado. Não entrei em detalhes sobre o homem de barba, pois preferia esperar mais uns dias para ver se a perseguição continuaria. E no dia seguinte, no mesmo terceiro vagão que eu, lá estava ele. Tranquilo, sentado, lendo seu livro, como se nada estivesse acontecendo. Quando o chefe da estação de Jundiaí deu o primeiro sinal para a partida do trem – o fato se repetiria trinta segundos depois, quando, então, o maquinista punha o trem em movimento – resolvi partir para a competição: levantei-me rapidamente e me dirigi para o vagão da frente. Ele não teve tempo de fazer o mesmo. Na estação de Várzea Paulista, mudei de novo de vagão, chegando ao primeiro. Minha intenção era confundí-lo. Segui tranquilo até a estação da Luz. Desci calmamente do trem e comecei a subir as escadas. Só então, me lembrei do perseguidor. E na hora que cheguei na avenida Casper Líbero, lá estava ele, olhando a vitrine, dez metros na minha frente. Respirei fundo e passei por ele. Voltei a vê-lo no outro e no outro dia, completando a semana. Não mais troquei de vagão e percebi, na sexta-feira, que ele mudara de livro. O que lia, agora, era mais grosso que o anterior. Foi uma semana sem ver Luzinete e Gerinho. Eles sabiam meu horário de trem e a gente havia combinado de se ver apenas à noite, na estação Baltazar Fidélis, uma antes de Francisco Morato, sempre que houvesse alguma novidade. E na sexta-feira resolvi conversar com os dois sobre o homem de barba. Queria checar com Luzinete se havia alguém parecido com ele no bando de Orlindo. Ela pensou muito e acabou dizendo que não. ////////////// O sábado passou rápido. Magda, minha mulher, cobrou de mim uma solução para a mochila, carregada de dólares. Tento explicar que, em breve, o caso estará resolvido e que, talvez, acabe sobrando uns trocados para a gente. Magda me olha no fundo dos olhos, sorri e mostra uma correspondência do banco que financiara nossa casa, comunicando que, em quinze dias o imóvel iria a leilão, por atrasos de pagamento. Sentei-me na cama, apoiei os cotovelos nos joelhos e baixei a cabeça até as mãos. O sangue subiu à cabeça e senti a pressão baixar. O ar começou a faltar e, de olhos fechados, estiquei uma das mãos, procurando por Magda, em busca de apoio. Ela segurou minha mão, num afago triste, aproximou-se de mim e puxou minha cabeça contra seu peito. Meus braços envolveram sua cintura e senti um suór gelado percorrer meu rosto, Não haviam palavras, por mais que me esforçasse. A carta do banco acabou caindo no chão e Magda se afastou assim que percebeu que eu estava voltando ao normal. Ela deu dois passos para trás, me olhou com seus olhos negros e tristes, e completou com uma frase que marcou o fim de semana: “quando a casa for a leilão, esses dólares não mais me interessarão”. Disse a ela que teria de consultar os donos do dinheiro. - Os ladrões, você quer dizer – gritou Magda, com um sorriso de desdém. Deitei-me na cama, já refeito da queda de pressão. Já não suava mais e acabei rindo da frase de Magda. Ela tinha razão. O dinheiro era roubado. Não faria falta às duas crianças – era assim que Magda os chamava, desde o dia que lhe contei sobre o dinheiro – emprestar dois mil dólares e acertar as contas com o banco. Eu seria um imbecil se não fizesse isso. Na segunda-feira, logo pela manhã, apanhei vinte notas de cem dólares e procurei o mesmo doleiro da outra vez. A troca foi feita sem problemas e, já de posse dos reais, me dirigi ao banco para saldar a dívida. O recibo e a suspensão do leilão vieram na hora. Em casa, chamei por Magda. Alexandre, com seus seis anos, estava na pré-escola. Eu havia passado numa joalheria e comprado uma bijouteria. Com o recibo e o papel, suspendendo o leilão, pedi que se fizesse um pacote especial, junto com a jóia. Entrei pela sala e chamei por Magda. - Tô aqui fora – gritou ela da lavanderia. Fui até lá e lhe entreguei o pacote, esperando sua reação. Ela me olhou recriminando – “não temos dinheiro para pagar a dívida da casa e você gasta com besteira?” – me disse ela, enquanto abria o pacote. O envelope com o recibo e o comunicado suspendendo o leilão caíram no chão, enquanto ela abria a caixinha com a jóia. Abaixei-me, apanhei o envelope e entreguei para ela. - Isso também é seu. Ela me olhou de novo e abriu o envelope. O riso tomou conta de seu rosto e seus braços voaram, junto com seu corpo de encontro a mim. Foi a manhã mais linda de nossas vidas. /////////////////////////////////////////////////// Luzinete me olhou com censura. Senti isso em seus olhos. Ela achava que eu não deveria ficar gastando o dinheiro assim. Olhei-a e sorri. E no meu sorriso, fui curto e grosso: “Tudo bem, moça, se você acha que não fiz as coisas certas, devolvo o dinheiro e amanhã mesmo trago a mochila”. Virei as costas e entrei no trem em Jundiaí e senti um calafrio. Lembrei-me do homem de barba e recuei, procurando-o na plataforma. Luzinete dizia algumas coisas que não consegui entender. Estava procurando o homem da semana anterior. Surpreendi-me por não vê-lo e voltei ao vagão. Realmente, ele não estava em nenhum lugar. Senti novamente o coração retomar seu ritmo normal e sentei-me. Luzinete sentou ao meu lado, pedindo desculpas. Estava assustada. - Aconteceu alguma coisa? – perguntei. - Não, mas não queria brigar com você. Tem ajudado bastante. Acho que merece ficar com aquele dinheiro que usou, principalmente se foi por uma causa justa. - Não vamos ficar julgando fatos. Tomei o dinheiro emprestado e vou devolver. Não sei quando, mas se você não vai fazer uso dele já, acho que fiz uma boa aplicação. Afinal, consegui salvar minha casa.. Ela sorriu e levantou-se, apanhando sua sacola de cerveja para retomar as vendas. O trem estava deixando Jundiaí. Entreti-me com as paisagens externas. Olhava os galhos de árvores balançando, como que querendo aplaudir o movimento do trem. Jundiaí, Várzea, Campo Limpo têm visões parecidas próximo da estrada de ferro. Quando chega a Botujuru, porém, a paisagem muda. De Botujuru até Perus, o que se vê, além de mata, agora em menor quantidade, são casas em construção. Noventa por cento delas, inacabadas. Até a imagem das estações é feia. A Luz, por exemplo, guarda uma imagem do século passado. As estações estão mais feias, mais destruídas, menos conservadas e o que se vê nos trens são homens embriagados, mulheres maltrapilhas, rapazes com shorts, crianças descalças, passageiros transportando bicicleta, cachorros, galinhas, até cabras já vi nos trens. A viagem prossegue. O túnel entre Botujuru e Francisco Morato, é uma atração especial. É uma sensação diferente passar por ele. Mas existem dias em que o maquinista abusa dos passageiros, passando pelo túnel com as luzes completamente apagadas. A sensação de falta de visão é terrível. Quando a claridade reaparece, percebe-se um sorriso de satisfação no rosto do passageiro. Aliás, a impressão que se tem é de que os maquinistas odeiam os passageiros. No período de frio, eles mantém ligado o circulador de ar, jogando um vento frio em todos os cantos do vagão. O aparelho só é desligado em Francisco Morato – isso na volta – quando o trem já está quase vazio. No verão, acontece o contrário: eles “esquecem” de ligar o circulador de ar, ficando um calor terrível dentro dos vagões. Mas prosseguimos a viagem: Franco da Rocha tem a estação, praticamente no centro da cidade, o mesmo acontecendo com Francisco Morato. Mas ao lado da linha férrea, continuam desfilando casas despidas de reboco e pintura. E barracos localizados nos barrancos. Pendurados no morro, como diria o poeta em sua oração mais sublime. Quando o trem se aproxima de Jaraguá, a imagem muda um pouco. Surge ao longe, o pico que acompanha o trem até Vila Clarice, esta uma das ais pobres estações e, com certeza, onde circulam menos passageiros. Em Pirituba, São Paulo se diz mais presente. Um volume de casas maior, mais juntas, mais ajeitadas. Piqueri é outra estação que, se o passageiro se distrair, passa sem perceber. Depois vem Lapa, onde o movimento de embarque e desembarque é grande. Lapa mostra o real estado da estrada: trens queimados, destruídos, abandonados. E, em seguida, chega-se à Água Branca e Barra Funda. E Luz. Hoje, o caminho foi mais tranquilo, percebo que ninguém me seguiu e que o trem manteve seu horário, o que significa que chegarei, pelo menos, cinco minutos mais cedo ao jornal. E pronto, já estou na Major Quedinho, esperando o sinal para atravessar... E não atravesso. O sinal abre, fecha novamente, torna a abrir e me sinto impossibilitado de andar. Vejo na porta do prédio do jornal, Robson conversando com o homem de barba bem feita. No segundo seguinte, os dois atravessam a rua e se dirigem a um bar. Consigo, então, atravessar e me dirijo ao jornal. Mas não entro. Próximo à porta observo os dois, tomando café e conversando animadamente. Decido esperar. É hora de descobrir o que Robson está aprontando prá cima de mim. O que foi que fiz para Robson mandar me seguir? Reluto em me manter onde estou, mas descubro que, de perseguido, virei perseguidor. Em dado momento, Robson se despede e vai embora. O homem de barba paga o café, atravessa a rua, em direção ao jornal, tira uma chave do bolso e abre um Gol azul, estacionado no meio fio. Quando o Gol parte, atravesso a rua e entro no jornal. //////////////////////// O noticiário do dia está fraco. A cada cinco ou dez minutos, paro o trabalho e procuro por Robson pela redação. A falta de grandes notícias me ajuda a editar a página rapidamente. Fernando, meu editor assistente, faz os últimos títulos e, por volta das 21 horas, terminamos o serviço. Decido esperar por Robson pelo menos até 22 horas. O editor chefe me dispensa antes disso e acabo ficando pela redação, batendo papo com o pessoal que já encerrou seu trabalho. Finalmente, vejo Robson entrar afobado pela redação. Vou até minha mesa, enquanto ele conversa com seu editor. Quando Robson abandona a redação e segue em direção aos sanitários, faço o mesmo. Cruzo com ele, lavando as mãos, enquanto abro o zíper da calça. Ele me olha pelo espelho, diz um “olá”, meio discreto, e deixa o local. Saio em seguida e voltamos a nos cruzar na sala do café. Ele joga rapidamente o copinho plástico no lixo e corre para redigir sua reportagem. Decido ir embora. Chegando à Luz, encontro Luzinete, com sua caixa de isopor, vendendo cerveja. Pergunto por Gerinho e ela diz que o mesmo está sumido há uma semana. Pergunto se não sabe onde ele se encontra e ela garante que o menino não tem lugar fixo. Pode ser até, diz ela, que ele esteja na Praça da Sé, com outros garotos, cheirando cola. A única coisa que ela teme é a droga injetável. Quero detalhes, pergunto se ele já se drogou assim alguma vez. Ela diz que sim com a cabeça. Ela tentou interná-lo para um tratamento, mas ele voltou a desaparecer. Quando os dois começaram a trabalhar juntos, Gerinho já cheirava cola. Ele nunca quis saber de maconha, mas ela garante que já o viu fumando crack. “Os garotos pegam estes copos de água de plástico que a gente vende no trem, coloca a pedra de crack dentro, deixa uma pequena abertura, para se colocar fogo dentro e esperar a saída da fumaça. É essa fumaça cheirada, que o pessoal fala em fumar crack”. ////////////////// Ele não se fez de rogado. Assim que o trem parou na estação Pirituba, rumo a Piqueri, percebeu que o número de pessoas que queriam entrar era maior que o espaço existente. Rapidamente colocou as pernas na janela, após apoiar as mãos nos vidros da mesma, deu um impulso, alcançando a parte superior do vagão, e, num segundo, estava no alto do trem. Do lado de dentro, algumas senhoras suspiravam: - Meu Deus! Ele vai cair... - Este não dá valor à vida... Ignorando as opiniões, ele sorria no alto do trem no momento em que o mesmo se afastava da estação. Primeiro, ele se sentou no alto do vagão, procurando uma melhor posição. Seu tênis, que ele chama de anti-derrapante, é sua garantia de vida. Assim que o trem ganha velocidade, ele se coloca de pé, atento aos fios de alta-tensão. O equilíbrio é difícil, mas ele se mantém firme. O trem reduz a velocidade e chega a Piqueri. A maioria dos passageiros desce e ele, de um salto, está de novo na plataforma. As pessoas olham para ele, com curiosidade. E ele se sente feliz, como um vencedor. Como se tivesse ganho uma competição. Entra no vagão, onde as pessoas comentavam sobre seu risco de vida e atravessa o mesmo, como se quisesse mostrar que é um grande atleta. A Rede Ferroviária Federal já mostrou que, se quiser, pode acabar com os surfistas ferroviários e pingentes. Certa vez, no Rio de Janeiro, local onde estes tipo de “esportes” também é praticado, foram detidos 580 surfistas e pingentes. Oito dos detidos eram soldados do Exército. Para se ter uma idéia, nos meses de janeiro e fevereiro de 1995, morreram, no Rio de Janeiro, oito pessoas, por quedas ou eletrocução, número muito próximo do total de mortes ocorridas no ano de 94 (11). Foi lançada em março de 95 uma campanha no Rio, intitulada “Operação Guarda-Vida”, feita nas estações onde mais ocorrem mortes por surfe (Nilópolis, Cascadura, Realengo, Vila Militar, Caxias, Queimados, Penha e Pavuna. O curioso, nisso tudo, é que não chega a 20% o número de menores que praticam tal esporte, o que significa que são os mais velhos os que mais gostam de colocar a vida em risco. Os “esportistas” detidos foram visitar uma exposição de fotos com corpos mutilados em acidentes de trem e assistiram vídeos sobre outras vítimas. Agentes de segurança, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos foram convocados para atuar no programa que durou o mês de março de 95. Em São Paulo, as mortes também acontecem. Nos cinco primeiros meses de 95, 10 pessoas morreram em decorrência da prática do surfe ferroviário. Tentando reduzir esse número, que dá uma média de duas mortes por mês, a polícia de Mauá, na Grande São Paulo, autuou em flagrante, no final de junho daquele ano, quatro rapazes por perturbação dos serviços e prática de atos que provoquem acidentes. Os quatro rapazes, com idades entre 18 e 22 anos, ficaram presos, pois este tipo de crime é inafiançável. Além das vítimas fatais, a polícia alertou que existem pessoas com ferimentos graves, muitas das quais hoje inválidas em cadeiras de rodas ou com queimaduras pelo corpo, provocadas pelo choque elétrico. Caso sejam condenados, podem pegar de dois a cinco anos de prisão. Quando ocorre acidente com morte a composição não pode prosseguir até a chegada da Polícia Técnica, prejudicando os demais passageiros, a maioria trabalhadores. //// Choveu muito durante o dia e a viagem de volta prometia ser longa, com o trem seguindo mais lento. Na estação de Vila Clarice, as pessoas que entram e saem do trem precisam tomar cuidado, pois fica sempre um buraco de mais de meio metro, separando a plataforma da composição. Tudo seguia tranquilo. Eu estava sentado, apenas acompanhando a movimentação interna, quando, exatamente na janela atrás de mim, duas mãos se apoiaram no vidro aberto e os pés vieram logo atrás. Num impulso, o rapaz chegou ao teto e se colocou em pé em cima do trem, no exato momento em que este se colocava em movimento. De dentro do trem, silêncio total. ///// A polícia ferroviária voltou a agir no início de novembro de 95. Num só dia ela prendeu vinte e dois surfistas e 149 pingentes, o que mostra, mais uma vez, que age quando quer. O fato aconteceu à tarde, entre as estações Capuava e Mauá, sendo que dos 22 surfistas, 11 eram menores de idade. Os maiores de idade ficaram detidos, sob acusação de infringir o artigo 260 do Código Penal, que dispões sobre o perigo de desastre ferroviário e prevê, em caso de condenação, pena de dois a cinco anos de detenção. Os menores foram liberados. O mesmo acontecendo com os 149 adolescentes e adultos detidos como pingentes. Sem estrutura, porém, a polícia só conseguiu identificar possíveis marginais entre os detidos. Luzinete estava entre os pingentes e, naquela noite, ao cruzar comigo no trem, foi a maior festa. Ela queria relatar sua aventura. No dia seguintes, mais 86 pingentes foram autuados e oito surfistas menores e dois maiores. Desta vez, Luzinete não estava com eles. //// Já em casa, meu pensamento volta a Gerinho. Depois do jantar, me deito e durmo rapidamente. Durmo e sonho: uma multidão de garotos corre por uma estrada que não consigo ver o fim. Eles gritam palavras indecifráveis e riem, e pulam, e se molham com uma água que não aparece e olham para o céu, esperando esta água invisível molhar seus rostos e, com as mãos recolhem o máximo possível deste líquido e o jogam pela boca, como que sedentos de algo impossível de ser tocado. E pulam! E riem! Todos os garotos vestem macacões beges que, com a água invisível, vão se tornando branco. No meio da multidão, um garoto veste um macacão roxo que, com a água invisível vai se tornando cor de sangue. Consigo reconhecê-lo: é Gerinho! Tento chamá-lo, mas a voz não sai. Grito, grito forte, um grito abafado, um grito contido. Uma mão esfrega minha cabeça e acordo. É Magda, tentando me acalmar dos gritos. Sinto um arrepio pelo corpo. Me levanto no escuro, vou à cozinha à procura de água. Percebo um vulto num canto da cozinha, ao lado do fogão. Parece um garoto encolhido. Tenho a impressão de ser Gerinho. Tento gritar seu nome e, mais uma vez Magda acaricia minha cabeça. Percebo, então, que continuo na cama. Que o sonho prosseguiu. Ela acende a luz e me olha com ternura. Ri para mim, me abraça. Estou transpirando muito. O pesadelo me esgotou. No dia seguinte volto ao trabalho. Chegando na estação, vejo um movimento maior que o de costume, com muitos marreteiros circulando pela plataforma. O movimento, logo se justifica: Luzinete está sentada num banco, cabeça baixa e vários marreteiros próximos dela: um sentado no chão, dois ou três no banco a seu lado, mais uns três, em pé, formando um pequeno círculo ao redor da menina. Aproximo-me, lentamente do grupo. Luzinete está chorando, sentada no banco, com o rosto entre as mãos. Ela soluça, esfrega constantemente as costas das mãos nos olhos, bate os pés, irritada. Neste instante, ela levanta o rosto e me vê. - Gerinho morreu! – grita ela, voltando a soluçar. Me aproximo, mas evito falar. Fico chocado com a notícia. Um dos marreteiros se aproxima de mim, me toma pelo braço, afastando-me do local. Luzinete continua chorando, enquanto um outro marreteiro lhe oferece água. Continuo sem saber o que dizer ou fazer. Minha gargante está seca e minha voz, percebo, desapareceu. - Ele foi assassinado – afirma o marreteiro de nome Lázaro, que me tirou do local. Entro com ele no trem, pois o chefe da estação soa a campainha, liberando a composição. Todos os marreteiros, inclusive Luzinete, fazem o mesmo. O grupo ocupa, praticamente metade do vagão. Lázaro senta-se ao meu lado e começa a contar a história sobre a morte do garoto. Lázaro lembra que foi ele que encontrou Gerinho, certa feita, perdido na Praça da Sé. Era comum Gerinho deixar os trens de subúrbio e se refugiar no metrô. Entrava no metrô na estação da Luz e ia até a Sé. Fazia este vai-e-vem vinte vezes por dia. Pedia dinheiro para os passageiros. Com o dinheiro comprava droga. Ninguém dizia nada, pois haviam outros viciados no grupo de marreteiros. A dependência com a droga foi acabando com a saúde do garoto. No trem, além da concorrência pela venda de produtos, havia briga para venda de drogas ou até mesmo consumo das mesmas. Gerinho era desesperado por elas. Preferia a droga do que um prato de comida. Quando passou a morar com Luzinete, conseguiu melhorar. Reduziu um pouco o consumo, mas percebeu que começou a economizar dinheiro: roubava drogas de Luzinete. Certa vez houve uma briga feia entre eles. Luzinete descobriu o roubo e Gerinho acabou confessando e garantindo que continuaria a fazer isso se sentisse vontade. Os dois brigaram a tapas. Luzinete ficou uma semana sem aparecer no trem, por causa dos ferimentos. A vida dos dois era assim: quando não trabalhavam como sócios no trem, Gerinho se perdia nas drogas. A parte pior disso tudo é que o garoto morreu em Francisco Morato mesmo. Os assassinos, imaginei, faziam parte de gangues opostas onde atuava Gerinho. Havia sempre, em Morato, brigas por postos de vendas de drogas. Cada um quer vender mais que o outro e, se alguém invade sua área de atuação, acontece briga e morte. Foi isso que aconteceu, dizia, com certeza, Lázaro, confirmando minhas suspeitas. Gerinho fora encontrado numa manhã de novembro por um desempregado, bêbado, que deixava o bar às 8 horas da manhã para ir dormir. No caminho, tentou encontrar um canto para mijar e acabou entrando num terreno baldio. Aproximou-se de um córrego e, numa clareira, viu um corpo caído. Num primeiro momento, chegou a ter medo, mas refeito do susto e até da embriaguês se aproximou para ver quem era. Imediatamente identificou o garoto e correu para a casa de Luzinete que dormia naquela hora. Quase derrubou a porta de tanto bater. Luzinete levantou-se brava, gritando e xingando. Abriu a porta e reconheceu o bêbado, Pedro Antonio, conhecido como Pedroca, 43 anos, barba e cabelos desalinhados, e que não trabalhava há dois anos, sendo sustentado por dois filhos, já que a mulher fora embora da cidade, cansada de ter de sustentar – dizia ela – três marmanjos. Pedro nos seus 18 anos e Antonio em seus 16, saíram à luta. Um deles, o mais novo, também era marreteiro e já estivera envolvido com drogas. Conhecia Gerinho e as gangues da cidade, mas estava afastado de todos, cansado de brigas, da dependência da droga e das broncas que levava do irmão mais velho. Quando Pedroca disse que encontrara o corpo de Gerinho próximo ao córrego, Luzinete não quis acreditar. “Vai se danar”, gritou ela, fechando a porta. Pedroca voltou dez minutos depois, acompanhado pelos dois filhos e por um policial militar. Ela deveria ir ao local, identificar o corpo. A menina teve um choque! Ela se negou a fazê-lo, mas não havia problema: Gerinho era conhecido tanto pelo policial, como pelos filhos do bêbado. Luzinete saiu em disparada para a estação. Tomou o trem e rumou para a Barra Funda. Queria reunir um grande número de marreteiros e enfrentar a gangue de assassinos. Queria vingança. Mais uma vez. Da Barra Funda, quando se juntaram 15 marreteiros, Luzinete seguiu para Jundiaí para ver se conseguia encontrar mais. Apesar de, nos dois últimos meses, ter vivido com Lázaro pois não conseguia ficar sozinha, Luzinete não sabia o que era viver sem Gerinho. A viagem até São Paulo foi triste. Nenhum marreteiro abriu a boca. Lázaro com seus quase dois metros de altura, magro, muito magro e de cor negra, caminhava de um lado para outro do vagão. Parecia o líder do grupo. Em cada estação, quando o trem abria as portas, os passageiros que entravam, olhavam assustados para o velório implantado pelos marreteiros. Passava das 15h40 quando o trem chegou a Francisco Morato e o grupo desceu. Desci com o pessoal e liguei para o jornal para avisar que me atrasaria. O grupo rumou para a casa de Luzinete. Entrei na casa da menina, mais por curiosidade. A casa ainda estava em construção. Faltava rebocar tudo. Entrei pela cozinha que era a única opção. Ela não tinha mais do que quatro metros quadrados. À direita, havia uma pia pequena, com duas panelas sujas de comida, um prato e dois talheres dentro de uma das panelas. Ao lado, entre a porta por onde entramos e um fogão, havia um vitrô, com dois vidros trincados. Para maior segurança, reparei que havia um cadeado para mantê-lo fechado. Acima da pia havia um pequeno armário, com uma das portas quebradas, onde pude ver pratos, copos, xícaras, meia dúzia de latas com mantimentos. O armário da pia não tinha portas, permitindo que se visse uma panela de pressão bem antiga, uma frigideira com um pouco de óleo dentro, um pedaço de sabão, um bombril bem usado e uma esponja. Uma pequena mesa com dois bancos completavam a decoração da cozinha. No fundo da mesma, viam-se três portas: uma que dava para um quarto – o único cômodo rebocado da casa, onde havia um beliche e um guarda-roupa antigo -, a segunda dava para um banheiro minúsculo, com vaso sanitário, um lavatório simples e um chuveiro. A terceira porta dava para a área de serviço. Luzinete deixou o quarto onde o pessoal conversava e rumou para o banheiro para trocar de roupa. Quando saiu, trajando um vestido azul escuro, sorriu para mim, mas pude perceber seus olhos estavam cheios de vingança. O enterro foi simples: não havia mais do que trinta pessoas. Vinte marreteiros, eu, dois garotos que Lázaro me informou serem amigos de Gerinho (ambos viciados), um investigador de polícia e uma mulher com pouco mais de quarenta anos de idade. O caixão de Gerinho era marrom, não muito maior do que seus um metro e cinquenta. Gerinho usava uma camisa branca de mangas compridas, que Luzinete conseguira de um amigo, uma calça jeans – que era dele mesmo – e um par de sapatos, que Lázaro havia conseguido de um fornecedor de cerveja. A cabeça e o rosto de Gerinho estavam enfaixados. Um esparadrapo grande mantinha as faixas presas. Podia-se ver, apenas, seus olhos roxos, provocados por uma pancada, seu nariz com algodão e a boca também roxa. A morte de Gerinho fora provocada por uma pancada na cabeça e dois tiros: um no peito e outro nas costas. //////////////// Chegando em casa, sentei-me diante do espelho. Fazia tempo que não parava para refletir. E acho que aquele era o momento. Lembrei-me de Luzinete, do dinheiro escondido em minha casa, da morte trágica de um garoto e comecei a me questionar o que fazia dentro de um trem se haviam ônibus para São Paulo. Acabei rindo da situação e tomara uma decisão: a partir do dia seguinte, iria de ônibus trabalhar. O trem estava descartado da minha vida. Era desnecessário e poderia prejudicar minha vida. Minha preocupação era com o dinheiro, mas também já tomara uma decisão: iria de carro até Morato, no final de semana, e levaria os dólares para Luzinete. Afinal, eram dela e não havia motivo para ficar escondido em minha casa. Magda percebeu meu ar diferente. Era quarta-feira, ainda, e não havia motivo para eu estar satisfeito, principalmente porque havia trabalhado no domingo anterior e, sempre no meio da semana o cansaço era algo certo. Eu tinha um filho pequeno e não poderia sair por aí, bancando o herói e tentando descobrir quem matara Gerinho. /////// O ônibus saiu no horário da Rodoviária e, em quarenta minutos estava no Terminal Tietê, em São Paulo. O sol de novembro me deixava exausto, por causa dos meus cem quilos de peso. Transpirava muito e minha camisa azul já estava toda molhada, denunciando às outras pessoas o que se passava comigo. Tentei ignorar todo mundo e entrei no metrô. O movimento na Rodoviária era grande naquele dia, mas o que eu queria era chegar logo ao jornal. Já não havia lugar no vagão para sentar, então coloquei-me de pé, junto à porta para facilitar meu desembarque. Mas quase desmaiei. Faltou-me o ar, tentei respirar, mas não consegui, minha mão procurou apoio e quase caio no solavanco da partida do trem. Senti a vista embaçada e forcei o olhar: diante de mim, me olhando nos olhos estava o homem da barba bem feita. Usava um terno cinza e uma gravata da mesma cor. Debaixo do braço carregava uma agenda com uma caneta colocada no meio dela. Sorriu-me e deixou aquele local, buscando espaço junto ao outro lado do vagão. Comecei a me refazer, quando percebi que a estação da Luz se aproximava. Procurei me aproximar dele, invertendo agora a situação: eu iria segui-lo! Estava definido. O trem parou e ele saltou rapidamente. Olhou para traz e preferi ficar dentro do vagão, apenas acompanhando seus passos. Aproximou-se de uma lixeira e atirou dentro dela a agenda, subindo rapidamente as escadas. Antes de soar o sinal para fechar a porta eu já estava fora do vagão. Corri até a lixeira e apanhei a agenda. O ar faltou-me novamente e procurei um banco para sentar. Desta feita minha vista se embaçou definitivamente. Da única coisa que me lembro foi de um rapaz de 20 anos, aproximadamente, tentando segurar minha mão. Não sei de onde veio tanta gente me socorrer. Três seguranças do metrô me ofereceram água, enquanto alguém me abanava. Chegou mais uma composição e o garoto que segurava minha mão desapareceu, sem que tivesse tempo de agradecer sua ajuda. Só o vi acenando de dentro do trem para mim e voltei a passar mal: ele me acenava com a mão esquerda segurando uma agenda: a mesma que eu apanhara há pouco da lixeira. Ninguém que estava próximo a mim naquele momento quis me perguntar o que acontecia comigo: eu chorava desesperadamente, queria me levantar, mas não tinha força para fazer isso. Percebi, para aumentar meu desespero, que o relógio desaparecera de meu braço. Mas, não sei bem porque, tudo isso me deu um alívio. Não era possível que aquele garoto, que me roubara a agenda e o relógio tivesse algo a ver com o subúrbio. Ele só podia ser um ladrãozinho qualquer, que aparecera no metrô, buscando algum gordo, suado e próximo a perder o sentido, para lhe roubar alguma coisa. No bolso da camisa eu ainda tinha o múltiplo dez do metrô, o que significa que ele só me tirara o relógio e a agenda. Logo reapareceu o trem e já me sentia melhor. Entrei no segundo vagão e fiquei próximo à porta, esperando minha hora de descer. Chegamos à Estação São Bento. Desceram duas ou três pessoas e subiram outras tantas no vagão em que eu estava. Soou a campainha anunciando que as portas seriam fechadas. – Segura -, gritou alguém que percebi vinha correndo em direção ao trem. Nunca havia feito isso, mas desta vez decidi segurar, mesmo sendo contra o regulamento. O rapaz entrou correndo e virou-se para me agradecer. Dei-lhe um soco na cara e antes que ele caísse retirei de sua mão a agenda que ele segurava. Saltei antes que a porta se fechasse e vi o trem partir com as pessoas procurando socorrer o garoto. Sorri de satisfação ao perceber a coincidência de todo aquele dia. O garoto era mesmo um ladrãozinho de metrô que percorria estações em busca de distraídos. Lembrei-me das histórias de Luzinete e Gerinho, quando roubavam passageiros e, mais uma vez, fui obrigado a sorrir, ao ver, na minha mão a agenda que perdera minutos atrás. Coloquei-a dentro de minha pasta para analisá-la depois e decidi ir a pé até o jornal. A emoção dentro do metrô fora muito forte e não queria viver outras. Querer eu não queria, mas percebi que três seguranças do metrô se aproximavam de mim. Alguém daquele trem avisara a estação do ocorrido, fizeram rapidamente meu retrato falado e os seguranças me procuravam como agressor. Fui convidado a acompanhá-los até uma sala naquela estação, mesmo tentando dizer a eles quem eu era. Respirei fundo, senti que deveria ter sangue frio naquela hora para evitar que problemas me ocorressem de novo. Na sala, um homem me esperava, sentado do outro lado da mesa. Os seguranças me colocaram ali dentro e desapareceram nos corredores. O homem sorriu, disse que teria que registrar um boletim de ocorrência, pois eu agredira alguém. Mostrei meus documentos, expliquei ao homem que o garoto havia me roubado, mostrei a agenda que recuperara e consegui encontrar uma saída à pergunta do homem: - Mas por que o nome da pessoa da agenda é diferente dos documentos que estão contigo? - Ele esqueceu ontem na redação e estou levando de volta hoje. - Mas ele não trabalha contigo? - Não. Esteve me fazendo uma visita na redação. Esqueceu a agenda em minha mesa e me ligou, depois para pedir que guardasse comigo, pois voltaria hoje para buscar. - Mas você o conhece? Sabe que é policial? A segunda pergunta me assustou, mas me ajudou a responder a primeira. - Claro. Trabalho na área de polícia, no jornal. Conheço todos os policiais. Fui liberado. Deixei a sala do chefe da segurança do metrô e rumei, de novo cambaleante, pelos corredores, em busca da plataforma de embarque. Minha situação se complicava perante o policial do subúrbio, mas uma dúvida, ainda maior, nascia dentro de mim: por que ele deixara sua agenda comigo? Eu sabia que esta resposta só teria na hora de ler suas páginas. E resolvi mudar meu dia: ao invés de ir para o trabalho, sentei-me num dos bancos instalados na plataforma e comecei a folhear a agenda, imaginando que ela tivesse todas as respostas que eu queria. ///////////////// Cheguei à Estação Barra Funda, louco para tomar um refrigerante. Minha decisão de voltar para Jundiaí de subúrbio tinha tudo a ver com a agenda que o policial de barba deixara comigo. Assim que o trem chegou, percorri todos os vagões em busca de Luzinete. Alguma coisa me dizia que tinha de encontrá-la. Não sabia exatamente o que diria a ela, mas queria conversar, relembrar histórias do alemão. Aquela agenda, na verdade, me deixara assustado. Haviam coisas ali que eu jamais imaginara encontrar: estavam escritos os nomes de Luzinete, Gerinho, Franz Weldhorf, Lázaro (riscado), Pedro Andrade da Silva, Orlindo de Oliveira, João Meloso, Armando Lima e Carlos Pedroso. Na hora, tremi de medo. Olhei de novo o último nome: Carlos Pedroso. Tremi outra vez. Não sei porque mas meu nome estava junto com o de toda esta gente e, num canto da página, estava escrito Robson. Imaginei que Robson passara meu nome e o do alemão para o policial de barba bem feita e que acabei, finalmente, sabendo seu nome: Marcos Roberto de Almeida. Pelo menos, este nome estava escrito na primeira página da agenda. Minha vontade era matar Robson, mas todos aqueles nomes me confundiam. Queria saber quem era João Meloso e Armando Lima. Imaginei serem os dois companheiros de Orlindo que perseguiam Gerinho e Luzinete. Mas por que o nome de Lázaro estava riscado? Conclui que Almeida estava investigando o caso, mas queria imaginar porque ele relacionara todo mundo na mesma situação. Mas, o que fazia meu nome na lista? Será que ele já desvendera o crime? Mas como eu estava envolvido? Todas estas dúvidas estavam em minha cabeça e queria encontrar Luzinete não tendo ainda certeza do que conversar com ela. Percorri os vagões três vezes. Eles não estavam muito cheios, daí ter facilitado minha caminhada. Não vi Luzinete, mas cruzei duas vezes com Lázaro. Quis perguntar a ele onde a menina estava, mas seu nome riscado na agenda me deixava preocupado. //////////////// A noite foi difícil de passar. Cinco horas da manhã já estava em pé, passeando pelo quarto. Magda queria saber o que estava acontecendo, mas não havia resposta de minha parte. O silêncio era a única forma de me comunicar com minha mulher. Por causa do horário de verão, o dia começava a nascer e decidi sair de casa. A vontade era pegar o primeiro trem para São Paulo e conversar com Almeida. A idéia era resolver rápido tudo isso e desaparecer. A preocupação era uma só: meu nome estava junto com suspeitos. ///////////// O trem se aproximava da estação da Lapa. Naquele dia eu decidira ir no primeiro vagão, praticamente acompanhando o trabalho do maquinista. Quando vi a estação, me levantei para ver de perto as pessoas na plataforma. Me assustei quando vi um daqueles rapazes que seguira Gerinho algum tempo atrás. Tudo aconteceu num segundo, num piscar de olhos. Quando olhei para meu lado, para ver um marreteiro que me empurrava para o lado, também para ver a estação, aquele vulto se precipitou sobre a linha. O maquinista nada pode fazer: o rapaz ficou debaixo do trem. Suicídio? A resposta parecia ilógica. Por que se matar? Mas numa fração de segundo, vi Lázaro deixando a plataforma e se dirigindo, rapidamente, ao portão de saída. Fui obrigado a descer, pois o trem só seguiria depois da chegada da polícia. Ao invés de caminhar pela plataforma à espera da polícia, decidi deixar a estação. Logo que saí, vi Lázaro num bar, do outro lado da rua. Rapidamente me escondi para não ser visto. Voltei para a estação onde tinha maior segurança e esperei pela polícia que chegou em dez minutos. Assim que duas viaturas pararam em frente à estação, Lázaro deixou o bar e sumiu. Preferi esperar a ação da polícia, mas antes tive de ligar para o jornal, avisando que chegaria atrasado. A bronca do editor-chefe foi suficiente para eu tomar um táxi e ir embora dali. Já na redação relatei o que vira e um dos repórteres policiais foi acionado. Robson passou por mim com um bloco de anotações e, com um fotógrafo, se dirigiu ao local dos fatos. Apesar de ver Robson na redação no final da noite, resolvi não puxar conversa. No dia seguinte, pela manhã, comprei o jornal na banca próximo à minha casa e vi o que Robson escrevera: o título dizia que um rapaz se atirara na frente de um trem na estação da Lapa, em São Paulo. O suicídio fora presenciado por dois marreteiros e o nome do morto era Armando Lima. Fechei o jornal, deitei-me no sofá e comecei a refletir sobre o que estava acontecendo: alguém matara Lima e duas pessoas testemunharam, alegando suicídio. Eram marreteiros e, tavez, amigos de Lázaro. ///// - Você conhece João Meloso? - Não – respondi. Por que? - Por nada. Pensei que conhecesse. O diálogo, curto e grosso, aconteceu entre Robson e eu na redação. Quando ele se afastou, lembrei-me da agenda em minha pasta. Apanhei-a para confirmar os nomes e lá estava João Meloso, bem ao lado de Armando Lima. Fiquei gelado, mas não quis checar com Robson o que estava acontecendo. Quando ele deixou a redação, meia hora mais tarde, se despedindo de todos, corri até o editor de polícia para checar as matérias do dia. Lá estava a informação: João Meloso, de endereço e profissão ignorados, morrera atropelado, no início da tarde, próximo à estação ferroviária da Lapa. A nota dizia também que a vítima era um conhecido traficante e que a polícia suspeitava de queima de arquivo, mas não fazia referência à morte do dia anterior. Já em casa, comecei a avaliar os acontecimentos. Várias pessoas haviam morrido e eu estava, cada vez mais, envolvido. Robson e o policial também estavam na minha lista. Achei que era melhor devolver o dinheiro para Luzinete. Mas antes tinha que marcar um horário e local com ela, para não ficar carregando tudo aquilo. Mesmo sem saber exatamente o que iria acontecer, decidi colocar um ponto final nisto tudo. Agora, o que eu precisava fazer era encontrar Orlindo e desvendar o mistério do policial que me seguia. E isso tudo, eu decidira fazer no dia seguinte. Quando cheguei na estação, percebi a presença de policiais ferroviários. Imediatamente, senti que os marreteiros teriam dificuldades em circular pelos trens. Aproximei-me de um deles e puxei conversa, tentando saber o que estava acontecendo. “Prenderam uma quadrilha de traficantes. Entre eles haviam alguns assassinos e um dos matadores vendia mercadoria nos trens.” Me assustei com a afirmação do policial, quis saber nomes, mas ele garantiu que não sabia. “Foi tudo em São Paulo, não temos nomes”, garantiu-me ele. Uma viagem até São Paulo sem a presença de marreteiros é monótona. Parece demorar o dobro do tempo. Tinha certeza de não encontrar Luzinete ou Lázaro e, assim que desci na Barra Funda, tomei o metrô, pois queria chegar logo ao jornal para checar as notícias policiais. Logo que entrei na redação, vi várias rodinhas de repórteres. Cumprimentei a todos e me dirigi à minha mesa. Fernando, meu subeditor, veio com as novidades. “Prenderam Robson e o irmão dele.” Abri meu computador e entrei no arquivo da editoria de Polícia. Lá estavam as informações: a polícia prendera Robson Almeida, Marcos Roberto de Almeida, Orlindo de Oliveira e Lázaro Alves da Silva. A polícia descobrira que Lázaro e Marcos Roberto eram os matadores de João Meloso e Armando Lima, um que fora atropelado e outro que “se atirara” na frente do trem. Me assustei quando percebi que Robson era irmão de Marcos Roberto, o policial de barba bem feita. Estava desfeito o mistério da perseguição à minha pessoa. Quando pedi para Robson investigar os fatos, ele colocou seu irmão, que era da polícia, na minha cola, para ver se descobria meu envolvimento com alguém e que poderia estar envolvido com a morte do alemão e com o dinheiro roubado. Lázaro se envolvera com Luzinete, pois Orlindo sabia do relacionamento dela com o alemão. Abri a minha pasta, retirei a agenda do policial-bandido e pedi para ir à delegacia. O editor-chefe me liberou, pois a redação estava “de ponta cabeça” com a prisão do jornalista e os editores de cada área discutiam um editorial para livrar a cara do jornal do envolvimento de seu funcionário com traficantes e assassinos. Quando cheguei à delegacia, vi Robson e seu irmão. Lázaro desviou o olhar e outro, que reconheci ser o homem que me ameaçara com uma arma no trem, quando perseguiam Gerinho, era Orlindo. Me identifiquei ao delegado e pedi para conversar com Marcos Roberto. Coloquei a agenda em sua mão e ele começou a falar, sem eu ter perguntado: “Quando meu irmão disse que você estava atrás dos matadores do alemão, achei que tinha algo a ver com toda a história. Reviramos a casa daquela menina em busca do dinheiro e não encontramos nada.”. Perguntei que dinheiro era esse e ele me contou: “Um milhão de dólares que o Orlindo deixou a menina levar e até agora não descobrirmos onde está”. Ele disse que jogou a agenda no lixo, na certeza de que eu a apanharia, mas não viu nenhuma reação de minha parte. Resolveu, então, acabar com todo mundo envolvido na história. A próxima seria Luzinete, mas a polícia os descobriu antes. “Lázaro pisou na bola na estação. Dois policiais o viram fugindo após a morte de Armando Silva.” Marcos Roberto confessou mais um crime: ele e Lázaro haviam matado Gerinho, pois ele não revelara o local do dinheiro. Lázaro começara a viver com Luzinete em busca de nomes. Mas ela nunca dissera o local onde os dólares estavam escondidos. Antes de sair, sorri para Marcos Roberto e revelei: “Eu estou com os dólares...” Virei-me e deixei a sala sem olhar para trás, mas sorrindo como vitorioso. Tinha certeza que eles pegariam vários anos de prisão e, neste tempo, eu estaria aposentado e longe do Brasil. Meu sonho era viver na Espanha. 3.000 VOLTS - Ei bonitão, tá livre esta noite? A voz não era estranha. Assim que desci do trem em Francisco Morato, pois estava disposto a procurar Luzinete, ouvi a voz da mulher que eu queria encontrar. Virei rapidamente o rosto e vi Luzinete sentada no banco da estação. Ela usava um vestido bege e uma blusa branca. Levantou-se, aproximou-se de mim, sorrindo e perguntou se tudo estava resolvido. Respondi que sim, que todos os homens estavam presos e que ela não precisava mais se vingar de ninguém. Seus olhos se encheram de lágrimas. Sentamos no banco, enquanto eu esperava um próximo trem para Jundiaí e ela voltou a lembrar de Gerinho. Lamentou ter colocado Lázaro em sua vida e agradeceu minha colaboração. Tudo estava resolvido, só faltava acertarmos os detalhes da devolução do dinheiro. - Fique com metade – disse-me ela, sorrindo. Você colaborou muito e acho que merece um prêmio. - Obrigado menina. Mas este me parece ser um dinheiro maldito. Desde que ele entrou em minha casa, vi várias pessoas morrerem, quase sobrou prá mim e acho que não quero nada, não! Amanhã mesmo trago a mochila para você. - A gente se encontra na Estação da Luz, no final da tarde, tá? - Quer dizer que terei que carregar a bolsa ao trabalho, mais uma vez? - Amanhã você não precisa trabalhar. Te dou folga, tá? – sorriu-me ela. Retribui o sorriso, levantei-me pois o trem começava a se aproximar e me despedi. Já dentro do trem, comecei a meditar sobre tudo o que acontecera. Lá fora começava a garoar e eu acompanhava o balanço do trem, sentado sozinho num dos vagões. Quando o trem chegou a Jundiaí, a chuva já era mais forte, mas não me preocupei com isso. Cheguei em casa todo molhado, tomei meu banho e quando jantava tranquilamente, Magda se levantou, aproximou-se de mim e sorriu-me dizendo que vira na televisão a notícia da prisão do bando de traficantes. - Estes eram os bandidos que você temia, não eram? - Sim, agora já podemos dormir tranquilos. Amanhã devolvo a mochila. A noite passou rápido e o dia também. Por volta das 16 horas cheguei à estação. Decidi que não trabalharia naquele dia. Deixei minha pasta em casa e só levei a mochila de Luzinete. Comprei a passagem, vi vários policiais ferroviários passeando pela plataforma, o que significava que os marreteiros estariam ausentes da viagem de novo. Quando subia a escada para passar do outro lado da plataforma, o trem já parava na estação. Nunca havia prestado atenção, mas sobre o trem, uma caixa enorme de energia marcava: 3.000 volts. Desci a escada, entrei num dos vagões e o trem avançou rumo à Capital. Desci na Luz e esperei por Luzinete. Sentei-me tranquilamente num dos bancos. Lá fora a garoa estava presente de novo. Aliás, chovera praticamente o dia todo. A mochila estava quente em minhas mãos. Luzinete não chegava. Mais um trem se aproximou da estação. Só desceu um garoto que eu sabia ser marreteiro, pois o vira várias vezes com Luzinete e o grupo. Ele veio em minha direção. - Cara, uma tragédia: Luzinete tomou o trem das cinco da tarde em Morato para Sampa e decidiu praticar surfe. O trem estava molhado, ela encostou na caixa de três mil volts e voou longe. Caiu mortinha no meio da linha. Tá no necrotério lá na Lapa. Permaneci imóvel onde estava. O trem partiu e não tive reação. Era difícil imaginar o que estava acontecendo. Chorar não tinha força, caminhar era impossível. A chuva fina caía lá fora e o silêncio cresceu dentro de mim. Não tive coragem de me levantar. O garoto desapareceu e a noite já estava presente, com uma chuva mais forte. Já passava das 11 da noite, quando mais um trem apareceu na plataforma. Apanhei a mochila com os dólares e entrei no primeiro vagão. A sineta tocou, o maquinista fechou a porta e saiu. Estava voltando para casa. Passamos Barra-Funda, Água Branca. Percebia estações chegando e passando. Me mantinha em pé, ao lado da porta, pessoas entrando e saindo, trombando comigo, e murmurando e me olhando e me interrogando, mas o silêncio era tudo o que me restava. Não havia nada a dizer, nada a fazer, nada a olhar. Apenas esperar. Esperar uma resposta do porque tudo tinha acontecido e nada. O apito do trem, a chegada da plataforma e a freada brusca me leva de volta à realidade. Percebo que o trem se aproxima de Jundiaí. Mantenho a mochila nos braços, sem saber o que fazer. Encosto-me na porta, quando, lá no fundo do vagão, um garoto levanta-se no banco, esfrega o rosto e me pergunta: - Tio, já chegou Francisco Morato? - Estamos chegando em Jundiaí. – disse-lhe eu. - Droga, vou ter que dormir na estação de novo? Não continuei o assunto. O trem foi parando lentamente, as portas se abriram e o garoto desceu na minha frente, procurando um banco para dormir. Passei por ele, olhei-o, encostando a cabeça na madeira fria. Voltei até ele, levantei sua cabeça e coloquei a mochila no banco, para lhe servir de travesseiro. Quando deixava a estação, virei-me para o garoto que já estava deitado e gritei para ele: - Ei garoto, qual o seu nome? - Gerinho – respondeu ele.