quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O trem da uma e dezessete

Domingo depois do almoço, nos primeiros anos da década de 1960, era exatamente assim: pratos lavados rapidamente, com o auxílio de todos e um trocar de roupas em poucos instantes para não se perder o trem. Se num domingo normal, o almoço era às 12h00, naqueles em que haviam viagens para São Paulo era diferente: meia hora mais cedo para dar tempo de não se atrasar.
Seu Alcindo apanhava o chapéu de ir à missa, dona Angelina colocava o vestido mais novo e os filhos vestiam a melhor roupa que tinham: o dia era para se visitar o Parque da Luz, comer um lanche e voltar para casa no final da tarde. A sacola com o pão, a faca e a mortadela rodava nas mãos dos filhos, com todo cuidado. Caminhada de casa, na Vila Progresso até a Estação Ferroviária, na Vila Arens, levava cerca de 20 minutos, bom mesmo não se descuidar. Era costume, em nossos passeios, vermos seu Alcindo lá na frente, “puxando” a família, com seu caminhar rápido. Os filhos vinham logo em seguida, mas sempre alguém reduzia o passo para acompanhar dona Angelina que não tinha os passos tão velozes como os do marido.
Chegávamos à estação pouco antes da uma da tarde. Enquanto as demais pessoas enfrentavam a fila para comprar a passagem, seu Alcindo puxava a “fila da família” que tinha direito a viagem grátis. É que seu Alcindo era funcionário da Estrada de Ferro onde, de vez em quando, todos viajavam de graça. E a gente não podia perder esta oportunidade. Nem que fosse para ir até o Parque da Luz, ao lado da estação, em São Paulo, ver os pássaros, o movimento dos carros e retornar para casa.
Já na plataforma, acompanhávamos o movimento de pessoas comprando lanches ou refrigerantes na lanchonete da estação. Por volta da uma e dez lá vinha o trem, aparecendo bem na curva... Aglomerávamos para entrarmos no mesmo vagão. Os vendedores de biscoito já tomavam conta da plataforma, enquanto o trem estacionava para os passageiros se acomodarem nos vagões.
Por ser de outra companhia de trem, a máquina que puxava os vagões até Jundiaí e que era da Companhia Paulista, era substituída pela da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, para o restante da viagem. O gostoso era ver a máquina chegando, encostando nos vagões para que o funcionário da companhia pudesse fazer o “engate”. Trem pronto, o chefe da estação conferia o horário: uma e dezessete em ponto! Apito na boca, maquinista solta o freio e lá vamos nós len-ta-men-te... e... a-ce-le-ran-do...ace-le-rando... acelerando...acelerando...acelerando...lerando... leran..ran...do...
Viagens inesquecíveis, com o trem percorrendo rapidamente o percurso. O mais gostoso da viagem era passar pelo túnel, em Botujuru. Como os filhos eram ainda pequenos, dona Angelina fazia questão de pedir para que todos dessem as mãos para atravessar a “escuridão” do túnel!
Ah! Vontade de voltar no tempo só para ouvir o apito do trem, para acompanhar o movimento das rodas sobre os trilhos, o caminhar das pessoas pelos vagões, o frear suave na estação... Mas como máquinas no tempo ainda não foram inventadas, a não ser no cinema, o jeito é mexer na memória, acordar os sonhos vividos e fazer de conta que tudo está acontecendo de novo... Nem que seja para sentir o coração bater mais forte. Como no ritmo do trem, seguindo os caminhos de seu destino...

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Bolinhas de sabão

Fazer bolinhas de sabão era algo extraordinário! Vendo as bolinhas coloridas subindo ao céu, flutuando, navegando no espaço! Mas não sei porque este tipo de brincadeira não existe mais nos dias de hoje! O computador, o videogame, tudo isso acabou com brincadeiras que, no meu tempo de criança, cativava todo mundo!
Mas não havia canudo nem canequinha para se brincar! Ademir e eu pegávamos uma xícara velha, um pedaço de sabão em pedra, água e – acreditem – um cabo de uma folha de mamão para transformá-lo em canudo. Confesso que tinha inveja dos garotos que brincavam com o canudo, feito com pedaço de bambu.
O problema maior do cabo da folha de mamão era o leite que saía do mesmo. E isso provocava feridas na boca, o que deixava dona Angelina preocupada, pois aquilo doía bastante.
Mas lá ia eu e Ademir brincar de bolinhas de sabão! Às vezes subíamos no muro para poder soprar a bolinha o mais alto possível e, quando ela era enorme, gritávamos desesperados para os amigos verem aquela obra-prima! Berto, Luciano, Adilson, Fernando e depois Mercinho, eram os companheiros da brincadeira. E ver a bolinha subindo, subindo, subindo para o céu era algo indescritível! Às vezes elas desapareciam no céu e quando estouravam, havia um ar de decepção; mas quando a recuperávamos na ponta do canudo era motivo de festa. E lá subia ela novamente...
Ademir se entusiasmava. Fazia uma atrás da outra, pulava, soprando para que ela subisse... Não esqueço jamais uma bela manhã, quando Ademir subiu no quarador – este sim, feito de bambu onde dona Angelina quarava a roupa – para que a bolinha subisse mais, mais, mais, mais, um sopro, outro sopro, mais outro e... a queda!
O braço raspou no arame farpado, que prendia um bambu no outro. O sangue jorrou forte. Ademir gritou de dor. Ao invés de acudi-lo, corri para dentro de casa, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Ademir quis esconder o fato, mas a dor era forte, o sangue era muito e lá vem dona Angelina desesperada, correndo para acudir o filho mais velho!
Dois pontos feitos na farmácia do seu Arquimedes, na Vila Arens, estancaram o sangue e aliviaram a dor mas a marca, esta ficou até hoje no braço direito, tornando inesquecível o fato! E as bolinhas de sabão ainda flutuam sobre nossas mentes...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

No Dragão Mecânica

Domingo de manhã, depois da missa das crianças e da reunião da Cruzada, ainda tinha muita coisa para acontecer, antes do almoço. E o almoço saía, pontualmente, ao meio-dia. Já em casa, e de roupa trocada - a de missa voltava para o guarda-roupa - lá ia eu e o Ademir ao campo do Dragão Mecânica, na Vila Progresso. Bem em frente à padaria União e que terminava na rua José Maria Marin. Meu time do coração era o Primavera, principalmente porque tinha, entre seus jogadores, Jayme e Bruno, dois irmãos que "gastavam" a bola.
Sentava no barranco e ficava vendo o jogo, esperando a hora de vibrar com os gols. Quando me desinteressava pelo futebol, corria até os eucaliptos e ficava olhando o céu, as nuvens, sentindo a manhã passar...
O campo hoje não existe mais. Deu lugar à ampliação da Sifco, que comprou a Mecânica. Apesar da preferência por outro time, gostava também do distintivo do Dragão Mecânica. Ficava admirando a figura do bicho que soltava fogo pela boca. Mas ficava entusiasmado mesmo com o toque de bola dos dois irmãos que, durante a semana, trabalhavam na venda do seu Valentim. Era comum, quando lá ia eu comprar feijão, arroz ou farinha para o almoço, ouvir os dois comentando com algum freguês como tinha sido o jogo do domingo. E lá ficava eu observando os detalhes e lembrando daquilo que tinha assistido.
Algumas vezes me aproximava da mesa colocada do lado de fora do campo para acompanhar a transmissão do jogo pela Difusora. Ali não tinha cabine para a transmissão e o locutor ficava sentado sobre a mesa para poder ter uma visão melhor do jogo, enquanto o "repórter de campo" ficava sentado no chão, ao lado do gramado.
Acho que foi por causa disso que surgiu em mim a paixão pela informação. Tanto que meu primeiro emprego na área de jornalismo foi numa emissora de rádio, mas escrevendo eu me sentia melhor, principalmente porque tinha vergonha de falar em público.
O público não era grande, mas as brigas também aconteciam. Cheguei a ver torcedor rolando o barranco, pois não haviam arquibancadas montadas. No barranco faziam-se degraus onde a torcida sentava. E o torcedor tinha que levar jornal ou papelão para não sentar diretamente na terra.
Era por causa das brigas que minha mãe dizia para termos cuidado. Ademir a tranquilizava, dizendo que tomaria conta de mim. E lá ia eu, satisfeito, com tanta proteção.
Quando fiquei sabendo que o campo seria destruído, para ampliação da fábrica, confesso que chorei. Marcaram o último jogo, a torcida lotou o "Dragão Mecânica", mas não tive coragem de assistir ao jogo. De casa, ouvia os gritos da torcida, já que o "Dragão Mecânica" ficava a cem metros, no máximo, de onde eu morava.
Foi aí que comecei a perceber que as coisas boas da vida não ficam paradas no lugar. Vão embora, dão lugar ao progresso. Claro que outras coisas boas aparecem em nossas vidas, mas marcas da infância ficam para sempre!
E hoje, cada vez que passo em frente ao local onde existia o campo, paro para ouvir os gritos da torcida, vibrando com os gols, xingando o juiz ou sofrendo com os lances perdidos. E retomo o caminho com um sorriso nos lábios, balançando a cabeça e remoendo o cérebro para agradecer a Deus o tempo que ali vivi...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Rua de terra era área de lazer

Jogar bola na rua sempre foi correr riscos. Claro que não por causa do movimento de veículos, até porque, na minha infância, o que passava pela rua de casa eram bicicletas, carroças e alguns táxis. Rua de terra, na década de 1950, era área de lazer. E tome jogos de Rua de Baixo contra Rua de Cima, ou “eu e meu irmão contra o resto”, frase comum nos tempos em que eu era parceiro de Ademir, meu irmão mais velho, e o resto eram cinco ou seis garotos... E a gente ganhava sempre! Mas como dizia, riscos eram comuns nestes jogos, porque bola na casa de alguém era difícil continuar a partida no mesmo dia. Se a bola caísse no quintal de minha casa, ficava difícil achar, pois a plantação de milho do seu Alcindo acabava virando esconderijo. Bola na casa do Zé Mota, era torcer para os cães de caça não a encontrarem... Se ela fosse no quintal de seu Antonio Torelli, Adilson, o neto. que jogava com a gente, resolvia o problema. No quintal do seu Morais, o risco de a bola cair lá era de o jogador não voltar, entusiasmado com as frutas que encontrava por ali. Do lado debaixo da rua, não haviam quintais, a bola batia nas paredes das casas, fazendo tabela e voltaram para o jogador. Sidney e Nê tinham, depois, que convencer seus pais de que não foram eles que chutaram a bola na parede e sujaram de barro, principalmente quando tinha chovido. Mas se a bola quebrasse a vidraça de alguma janela, em dois segundos 0não tinha mais ninguém na rua. A gente só começava a reaparecer meia hora depois, como se nada tivesse acontecido! Se questionado pelo dono da casa que teve a vidraça quebrada, ninguém sabia de nada... Mas difícil mesmo era quando a bola caía na casa de dona Carlota. Por ela ter apenas uma filha, que a gente chamava de Nenê, o contato com garotos de um pouco mais idade, era assunto proibido e a devolução da bola ficava condicionada à chegada do marido de Carlota. Claro que não me lembro do nome dele, na verdade, nem me lembro dele direito. Só sei que trabalhava na Estrada de Ferro, igual ao meu pai. Quando a bola caía ali, muita gente já ia embora, pois sabia que a “negociação” seria difícil. Dona Carlota se negava a devolver a bola, pois dizia que em frente à sua casa não era campo de futebol, que tinha lugar na rua da Várzea em frente ao armazém do Valentim ou tinha, ainda, o campo do Dragão Mecânica, ao lado da Sifco. E quando a argumentação dela chegava ao Dragão Mecânica, virava vaia e aí a devolução só acontecia no dia seguinte. No Dragão Mecânica ocorriam jogos do Campeonato Amador da cidade e o Primavera era sempre o grande time do bairro. Talvez por isso, a gente gostasse tanto de jogar futebol.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Histórias que seu José contava na rua Marrocos

Foi sempre na mesma casa, nesta rua, no Jardim Bonfiglioli, que vi o seu José Munarolo. De baixa estatura, nunca o vi sem um chapéu na cabeça. Ver vi sim, mas foi numa tarde de julho, no início da década de 1980, quando ele deixou este mundo.
Este seu José que não esqueço, conheci, bem criança, na década de 1950, quando eu tinha quatro, cinco, seis anos. Gostava de ouvir as suas histórias, contadas com emoção, com detalhes... Seu José, que sempre chamei de “vô”, mantinha um sorrindo constante, falando sobre seu tempo de trabalho na pedreira do lado de lá da Anhanguera. E as histórias ocorriam sempre nas tardes de domingo.
Eu gostava de sentar no degrau da porta da sala para ouví-lo falar, contar, rir ou até se emocionar com suas histórias. Às vezes se levantava de uma cadeira da sala, porque sofá ou poltrona não haviam, gesticulando como o personagem de sua história. Eu ficava ali, com o queixo apoiado na mão, olhando aquele homenzinho, lembrando de histórias de 30, 40 anos passados. E contada com uma riqueza de detalhes que me deixava ainda mais orgulhoso de tê-lo como meu avô.
Gostava quando ele dizia que “... o finado fulano...” e, na minha mente infantil, eu entendia que esta pessoa havia falecido. E me sentia feliz pelas conclusões que tirava.
Foi com ele que aprendi a tomar meu cafezinho, vício que tenho até hoje. Mas o que eu gostava mesmo era do pacotinho de bala que ele nos entregava. Nem que fosse bala de mel, não tinha problema. Era gostosa da mesma forma. Era dada pelo meu avô!!!
Junto com seu José moravam minha tia Teresa e tio Geraldo. Tempos depois ela se casou e foi morar em Várzea Paulista, tendo falecido no ano passado, enquanto Geraldo, o mais novo dos irmãos de dona Angelina, também se casou e levou consigo meu avô.
Além de minha família, aquelas tardes de domingo reuniam ainda os outros irmãos de minha mãe: João, Valdemar e Antonio. E, claro, os filhos deles. E era com os filhos deles, meus primos, que a gente se divertia na velha rua Marrocos. Naquele tempo, uma rua de terra, onde nunca passava carro e a gente cansava de brincar de “mocinho e bandido” ou correr pelo barranco que havia bem defronte a casa onde meu avô morava.
Além de “mocinho e bandido”, as brincadeiras variavam desde “balança caixão” até “mãe da rua”, passando pelo “lenço atrás”, “esconde lenço”, “passa anel”, “batatinha frita” e “telefone sem fio”. Brincadeiras inocentes, brincadeiras de crianças. Brincadeiras que não existem mais hoje...
Já no quintal da casa, a brincadeira preferida era “esconde-esconde”. Um forno de pão e um pé de amora eram meus esconderijos preferidos. Às vezes subia no pé de amora, colhia algumas frutas e ia saboreá-las atrás do forno, enquanto meus primos não me encontravam.
As lembranças são muitas, as histórias de seu José, inesquecíveis! Mas o marcante era sua forma de se despedir. Um aperto de mão, mas nunca, em momento algum, um “tchau” como despedida. Um largo sorriso nos lábios acompanhava o aperto de mão, seguindo-se de uma frase que nunca vou esquecer: “passar bem!”
E como saudade é uma máquina do tempo que nos transporta para a época ou o lugar que queremos, a lembrança do pequeno e velho José me faz mais novo, mais alegre, mais vivo, mas não deixa de impedir que uma pequena mas insistente lágrima atrapalhe a visão atrás do óculos. E a vida cria em nossas mentes álbuns de lembranças, que folheamos, rimos e choramos. Sempre que percebemos que a vida continua. E é um continuar sem fim, movido pela palavra saudade...

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Graça, muita graça. Graciosa!

Quando entreguei em suas mãos, na noite de lançamento de meu primeiro livro, minha obra e meu autógrafo, com dedicatória, saí de perto e aguardei, do outro lado da sala, sua reação. E, confesso, foi exatamente o que eu imaginava e esperava. “Para Alcides e Graciosa, obrigado pela maravilhosa filha que vocês me deram! Um abraço. Nelson” A reação foi de um sorriso doce, seguida de uma respiração profunda e de saudade. Saudade dos quarenta e tantos anos que se passaram desde que ela dera à luz a mulher que está comigo há trinta e dois anos. Não me disse uma palavra – e não era preciso -, o sorriso era suficiente para eu entender a alegria de seu coração. Confesso que não sei se leu o conteúdo do livro – um romance policial -, mas sei, com certeza, que a mensagem escrita, na primeira página, era muito mais satisfatória para ela do que qualquer outro texto interno.
Escrevi em outros livros, em parcerias com amigos de texto. Todos eles entregues em mãos para dona Graciosa. Sempre ela vinha até mim para elogiar o trabalho, que gostou do que estava escrito e que ia guardar aquilo com carinho. Jamais perguntei a ela se lera, por completo, o texto do primeiro livro. Nem a mim e muito menos a ela interessava isso, o importante era toda esta convivência, esta aceitação, esta participação de ambos, na vida um do outro.
Moramos juntos praticamente 27 anos e jamais houve entre nós uma discussão que seja. O respeito era tudo entre genro e sogra. Sentia que esta mulher nascera para servir e jamais reclamar do que fazia. Tinha a impressão de que gostava de ser assim: prestativa!
Viveu um casamento de 63 anos e foi, durante a maior parte deste tempo, enfermeira de Alcides, seu marido. Por problemas de saúde, ela cuidava dos remédios, sabendo o nome de cada um e os horários que deveriam ser tomados. Comentava com amigos o efeito de cada um deles e detalhava as composições impressas nas bulas, sempre preocupada com a saúde do marido.
Mas o que ela gostava mesmo de fazer era atender a campainha. Rápida, chegava ao portão antes de qualquer um e não negava auxílio. Quer comprando algo para ajudar pessoas ou entidades, quer dando um “trocado” com o mesmo objetivo. Era comum a campainha tocar e ouvir a voz de um motoqueiro, que vinha buscar contribuição que ela doara, via telefone.
Nas constantes trocas de pedaços de bolo, pratos de alimentos entre ela e Rita, minha esposa, era certo, horas depois, ela aparecer em nossa cozinha, pedindo licença para interromper nossa conversa e completando com “por um acaso, ficou aqui um prato marrom?” ou... “aquele pirex branco?” ou ainda “uma tigela que não encontro lá?” O “por um acaso” era marca de sua chegada até nós para pedir alguma coisa até “por um acaso você comprou banana hoje? Pode me arrumar duas? A minha acabou!”
O tempo, para ela, não importava. Jamais deixara de lado seus tricôs e a revistinha de palavras cruzadas. Um era usado no momento em que se cansava do outro. Pares de meias feitos de tricô, eram distribuídos a amigos, vizinhos, parentes. Mantas eram trabalhadas com carinho, sempre que ouvia dizer que determinada moça estava grávida. A manta tinha cor definida, quando ela recebia a informação do sexo do novo bebê.
Jamais vi esta mulher reclamando. Ultimamente ela dizia que estava feliz com o que as coisas que tinha e que realmente “curtira” a vida.
E foi nesta felicidade, que, preocupada em não dar trabalho aos outros, que numa manhã de domingo, exatamente num domingo de Carnaval, que ela se foi, em silêncio, quieta, emendando o sono com sua partida. Eu não estava em casa nesta hora, mas um telefonema de minha esposa, informando que Graciosa estava mal, me fez correr e, na hora em que abri a porta da sala e ouvi, no quarto, o choro contido de Rita de Cássia, que senti que ela se fora. Sem se despedir, sem uma marca de dor em seu rosto. Uma partida cheia de paz. Como ela gostava de viver.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

O quintal do seu Morais

Brincadeira de rua nem sempre tem final infeliz. E o infeliz sempre gira em torno de uma queda, de uma briga e alguém sair chorando para chamar o irmão mais velho para "acertar as contas". Brincadeira de rua, no final da década de 1950 na Vila Progresso, tinha uma espécie de prêmio para os garotos mais atrevidos. E o prêmio vinha, exatamente, depois da brincadeira: o quintal do seu Morais.
Nos meus tempos de criança, jamais cruzei com este homem. O que sabia era que seu Morais era o dono de um terreno a 30 metros da casa onde eu morava, bem na esquina. O terreno tinha de tudo: pés de manga, goiaba, caqui, abacate, laranja, lima e uma sombra deliciosa que servia para refrescar a garotada que acabava mais uma partida de futebol.
Os meninos deixavam a rua e corriam para o quintal. Difícil era o acesso, pois o terreno tinha apenas uma cerca de bambus, amarrados com arame farpado. A preocupação maior era pular a cerca sem se machucar nos arames. O objetivo, claro, era saborear as frutas do quintal do seu Morais.
Depois de colhidas, o pessoal sentava na sombra das árvores e ficava contando histórias, relembrando o jogo, enquanto um dos garotos ficava na esquina de "prontidão". Se seu Morais aparecesse, todo mundo tinha que sair correndo.
Apesar de nunca ter visto este homem, nem imaginar como era fisicamente, morria de medo. E sempre que acabava o futebol na rua, lá ia eu para minha casa. Os amigos me chamavam de covarde, mas agora era eu quem zombava deles: prá que correr riscos se tinha todas estas frutas no quintal de casa?
Sempre que o pessoal seguia até o quintal do seu Morais, me lembrava das recomendações de minha mãe: não faça como os outros garotos! Eles estão invadindo um terreno para roubar frutas!
Concordava com a cabeça, mas questionava dona Angelina: "mas se os garotos não comem, elas acabam estragando, o chão está cheio de frutas apodrecendo..." Os olhos azuis de dona Angelina vinham em minha direção como uma mensagem do céu, como que dizendo "filho, procure sempre fazer o que é certo..."
Aqueles olhos cor de céu e aqueles cabelos brancos como nuvens me mostravam que o caminho certo era não "invadir" o terreno do vizinho. Mas curiosidade de criança é algo inexplicável. Chegava em casa depois do futebol e ficava no portão, olhando o movimento na rua, sonhando em ver o seu Morais. Mas ele nunca aparecia...
Quantas e quantas vezes eu corria até o pomar, apanhava uma goiaba vermelha e voltava para o portão. Enquanto saboreava a fruta, sonhava com o "malvado" do seu Morais: um homem de bigode enorme, com um chapéu preto na cabeça e andando numa bicicleta...Nem sei se o seu Morais era mesmo "malvado" e nunca questionei este ponto com minha mãe. O que minha mente registrava era: por que uma pessoa tinha um terreno tão grande, num bairro onde morava um número tão grande de crianças e deixava as frutas estragando na árvore?
Minha reflexão terminava mudando a idéia de que seu Moraes era "malvado". Minha conclusão é de que ele era um homem legal, que gostava de crianças felizes. E gostava tanto, que deixava as frutas ali, nas árvores, só para alegrar os meninos da Vila Progresso!