terça-feira, 12 de julho de 2011

Pinga e cigarro

Ele sempre foi um homem calado, alto, forte, rosto vermelho e um chapéu na cabeça. Este detalhe eu não esqueço: o chapéu na cabeça. Usava em toda parte: para trabalhar, para cuidar da horta e do jardim, para ir à missa aos domingos. Sempre e em todo lugar! Tirava na igreja, mas segurava na mão. Ninguém mexia em seu chapéu. Aliás, ele tinha vários: um para usar nos domingos, principalmente quando ia à missa ou passear com a família, outro para ir ao trabalho, este um pouco mais surrado, e um terceiro. Aquele de usar em casa, com aba caída, pequenos furos. Surrado, surrado. Muito surrado! Na verdade, meu pai gostava de usar as coisas até o último instante, quando não dava mais para aproveitar. Não que fosse pão duro, mas se gostava das coisas, curtia até o último instante.
E no final da tarde lá vinha ele do trabalho, com a marmita na mão. Ele sempre fazia a mesma coisa: deixava um pouco para os filhos... Em casa, eu e meus irmãos, corríamos em busca da marmita para ver quem conseguia comer mais. Não que estivéssemos passando fome, mas era gostoso – e até hoje nem eu nem meus irmãos conseguimos explicar o porquê – comer o que sobrava do almoço do “velho”.
Meia colherada de arroz, outra de feijão com farinha, às vezes um pedacinho do bife ou um pedaço do ovo frito. Era isso! Ou era por tudo isso que os seis filhos “brigavam”. Mas a divisão era justa: o que ele trazia na marmita era suficiente para todos. E a gente sentia que tudo isso era dado com muito amor. E era isso que a gente gostava no seu Alcindo...
A lembrança maior de todos os filhos, porém, está ligada a um dia da semana: a segunda-feira. Esse dia era sagrado. Seu Alcindo apanhava uma caneca que ficava escondida no armário da cozinha, com uns “trocados”, e chamava um dos filhos para ir ao “Armazém do Valentim”.
- Compra um litro de pinga do garrafão e um maço de cigarro Fulgor – dizia ele para o filho que estava mais perto. E lá ia eu ou um dos irmãos até a “venda da esquina” para a compra da semana.
Sempre que eu saía para as compras no armazém do seu Valentim, ia falando baixinho as coisas que minha mãe pedia para comprar: um quilo de feijão, um de arroz, um Extrato Elefante e um quilo de quirela. Mas a compra do seu Alcindo não precisava se repetir no caminho. Era só isso, uma vez por semana: a pinga, e tinha que ser do garrafão, e o cigarro que ele deixou de fumar, quando sentiu uma forte dor no peito, um dia. Aliás, nunca vi seu Alcindo doente. Nem para morrer deu trabalho à família: teve um infarto fulminante num frio final de tarde de julho e caiu no chão. Sem vida.
E lá voltava eu com a pinga, o cigarro e duas ou três moedas de troco. Entregava tudo para ele e saía. Ia para a sala ver, disfarçadamente, a ação do “velho”. O cigarro ele colocava no bolso da camisa – aliás, sempre camisa de manga comprida, pois tinha a pele fina e não podia sofrer o calor do sol -, e a pinga colocava dentro do armário.
O ritual era quase sempre o mesmo: apanhava o regador e ia aguar a horta: almeirão, alface, rúcula, repolho, cenoura e até morango; no jardim, as margaridas, as roseiras, os cravos. Terminado o serviço, sentava na cozinha, acendia um cigarro e acompanhava a fumaça subindo, como numa prece até o céu. Apanhava um copo, colocava o líquido que tinha vindo do garrafão e saboreava gole a gole os três dedos da pinga, que ele dizia ser pura. Da sala, eu “espionava” a ação dele. Era como se eu sentisse aquele gole amargo, batendo no estômago. E, mesmo sem nunca ter colocado um cigarro na boca, era como se eu sentisse o sabor do Fulgor. E não podia ser outra marca. Às vezes tínhamos que procurar em todos os pontos comerciais perto de casa se na prateleira do seu Valentim não tivesse o Fulgor. Em último caso, ele aceitava um Macedônia, mas no dia seguinte saíamos à procura do Fulgor. Questão de preferência!!!
Seu Alcindo ficava ali, sentado, olhando o movimento dos pássaros que vinham ver sua linda horta ou acompanhando o movimento de dona Angelina, preparando o jantar. E depois do jantar, quando todos já tinham se retirado da mesa, ele permanecia lá, sentado, olhando a noite.
Eu via ali um poeta sem palavras, sem versos, sem frases feitas, interpretando seu mais lindo poema. E quando o apresentador do “Repórter Esso” dizia “até amanhã ou quando um fato importante exigir uma extraordinária”, ele levantava da cadeira, dizia boa noite a todos e lá ia sonhar... saboreando as alegrias de mais um dia.
O momento mais triste que me lembro dele, foi numa manhã de verão, em março, quando chorou sobre o caixão de dona Angelina, se despedindo, mas avisando que iria procurá-la em breve. E foi o que fez, dois anos depois.

5 comentários:

  1. Olá Nelson! Sou Mauro Manzato, tenho 44 anos e moro em Vinhedo. acredito que somos parentes. Também sou escritor, tenho 2 livros publicados e estou escrevendo o terceiro. Não conhecia seu blog, mas partir de agora vou acompanhar suas postagens. Forte abraço!

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  2. Olá Mauro. Acho que somos sim. Voce deve ser parente dos Manzatos de Valinhos, descendentes de Sebastião, não? Sebastião era irmão de mau pai, Alcindo

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  3. Nelson, é um prazer poder ler seus textos aqui. Vou sempre dar uma passada para conferir novidades. Essa crônica é muito bonita passa muito bem seus sentimentos.Parabéns! A Revista que fazemos na Astra ainda não está pronta. Tivemos uns contratempos e e está atrasada. Mas assim que chegar aqui, eu mando um exemplar para você. Até mais... Beijos

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  4. Nelson, que crônica maravilhosa. Conta sua história de vida e lembranças que jamais serão apagadas. Parabéns. Fiquei muito emocionada lendo suas palavras. Por enquanto,e graças a Deus, ainda tenho meus pais, mas quando não os tiver mais farei o mesmo que você. Publicarei nos quatro cantos da terra, o meu amor e profunda admiração que tenho por eles. Abraços.

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  5. Obrigado Rê, Obrigado Leticia. Bom ter vocês por aqui

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