sábado, 27 de agosto de 2011

O velho foieiro

Italiano, pequeno, um vasto bigode, óculos na ponta do nariz, um velho e surrado avental branco, todo sujo e muita, muita vontade de trabalhar. O velho Vicente Rossi, na rua Moreira César, não tinha preguiça de trabalhar. Sua pequena oficina de consertos ficava na frente da casa, onde morava com seu filho casado, já que o outro se ordenou padre, foi sagrado bispo e se transformou num dos mais importantes cardeais deste país. Seu Vicente era viúvo quando o conheci.
E era na velha oficina que seu Vicente consertava de tudo: panelas, bacias de alumínio, regadores. Sempre com um toque de mágica: uma gotícula de solda! E seu preço era sempre o mesmo: um cruzeiro. Ou, se fosse com a cara do freguês, nem cobrava, mas ficava contando histórias, histórias e mais histórias. Era um velho italiano que gostava de falar, falar e falar. E é daí que saiu o apelido de foieiro: ele sempre trabalhava com folhas de zinco, de lata...Tudo isso.. lá no final da década de 1950, início de 1960, quando, de calças curtas, eu frequentava a Escola Paulo Mendes Silva, ali na Fernando Arens ou ia à igreja aos domingos, acompanhar as palavras do padre Alberto e depois as de padre Hugo na sala da Cruzada Eucarística Infantil de Vila Arens.
Vez em quando lá estava eu, com meus sete, oito, nove anos, com o velho regador usado para molhar as plantas do quintal e que sempre tinha problemas: um furo no fundo. E era mais barato mandar consertar do que comprar um novo. Às vezes o velho italiano dava uma pintura nova, sem pedir autorização para o freguês e concluía dizendo que "como fiz sem você pedir, não cobro o serviço". E lá ia eu satisfeito para casa mostrar a beleza do regador que agora parecia novo!
A única coisa que me deixava inibido era sair de casa ou da oficina do seu Vicente carregando o regador, a panela ou ainda aquela enorme bacia que era usada para tomar banho quando faltava água. A impressão que eu tinha, andando na rua, é que todo mundo olhava para mim - e olhava mesmo!!! - e eu ficava todo vermelho. Aliás, meu apelido era pimentão...
Sempre que chegava à oficina do foieiro, gostava de vê-lo conversando. Falava, gesticulava, andava de um lado para outro, ia até a porta ver o movimento, voltava, gesticulava, gesticulava (e como gesticulava o seu Vicente!!!) mas não perdia o fio da meada. A pessoa com quem conversava, praticamente só ouvia, pois o Vicente era um falador inveterado. Gostava de falar! Eu, com meus poucos anos de idade, não conseguia entender uma frase que o velho dizia, mas feliz por ouvi-lo.
Alguma palavra eu guardava na memória, chegava em casa, corria para minha mãe perguntando o que aquilo significava. Como não conseguia pronunciar as palavras direito, pois seu Vicente falava mais em italiano do que em português ou em “portulhano”, minha mãe não sabia o que ele tinha dito e eu ficava sem entender a história.
Uma bela manhã, porém, a oficina amanheceu fechada! Passei por ela de manhã, retornei no início, no final da tarde e nada! Fechada! Voltei para casa pensativo, imaginando onde estava o velho Vicente.
Sonhei com sua oficina. A porta era comum, parecia mais uma casa. Ao entrar, porém, vinham as surpresas: logo na entrada, uma pequena mesinha e um banco menor, onde seu Vicente sentava para executar o trabalho de solda ou desamassar uma panela com martelo. Nas paredes da oficina, prateleiras, prateleiras e mais prateleiras. Mas nas prateleiras pouca coisa. O que se via eram pendurados pelo teto regadores, panelas velhas, panelas novas, bacias. Tudo o que seu Vicente consertava.
E me lembro - e como me lembro -, quando aparecia alguém prá dizer que tinha deixado, fazia 15 dias, uma panela para arrumar, mas só agora tivera tempo de ir buscá-la. O velho olhava, entregava o material consertado e não cobrava nada. Quando o freguês deixava a oficina, ele blasfemava baixinho alguma coisa que eu não entendia, olhava para mim, passava a mão na minha cabeça e dizia: "o teu também é de graça, você está sempre aqui"... e lá ia feliz para a sorveteria gastar o um cruzeiro que seu Vicente não quis.
E no dia seguinte, quando acordei, veio a notícia: a oficina não ia abrir mais. Seu Vicente tinha ido se encontrar com dona Vitória...

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